sexta-feira, 20 de maio de 2016

LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA





                                                              Cunha e Silva Filho


                 Não sou  especialista das obras  jurídicas e literárias legadas  por Rui Barbosa nem tampouco da sua biografia. Sou apenas um admirador  do seu talento. O que exponho neste artigo são comentários  alusivos  a esse brasileiro afamado sobretudo pela sua  grande inteligência, saber  jurídico,  sua erudição espantosa,  seu conhecimento  humanístico, sua vocação  para as línguas  clássicas e modernas, alguns lances de sua  vida pessoal  que vim a saber, um dos quais  através  do meu pai, ou que eu mesmo  colhi da pouca leitura que fiz  da sua extensa  e variada obra. Nem mesmo cheguei a ler por inteiro  a importante  biografia  de Rui escrita por  Luís Viana Filho, membro da  Academia  Brasileira de Letras. Um velho exemplar tinha  desse livro na biblioteca de meu pai que,  por lapso de memória,  não  mencionei em livro que vou lançar  brevemente.
             Tanto no  período de adolescência em Teresina  quanto  no meu  tempo  de residência  no Rio de Janeiro,  a figura  de Rui esteve de alguma forma  presente no horizonte de minhas leituras. Primeiro,  através de textos   dele incluídos  em livros didáticos  e aqui me recordo de que, num livro do professor  Enéias Martins de Barros para os anos  do ginásio,  havia uma epígrafe   utilizada numa das primeiras páginas de um volume, que dizia (e de que jamais  esqueci):”Uma raça, cujo espírito  não respeita  seu solo e seu idioma,  entrega a  alma ao estrangeiro antes de ser por ele absorvida” Não me dei ao trabalho  de localizar a obra em que  essa frase   se encontra nem é meu propósito  nestas linhas.
           Ora, ao  reler ou relembrar aquela citação de Rui,  sempre a associei à condição dos cidadãos, no caso,  brasileiros,  que  preferem  falar melhor e escrever  uma, duas, três ou mais línguas estrangeiras sem se aprofundar, primeiro e principalmente, no seu  próprio idioma. Não é exagero o que lhe falo, leitor,  sobre  esse tipo de pessoa.Delas há e muitas. Não dominam  o vernáculo e já saem por aí  vendendo a alma ao  estrangeiro.
          Entretanto,  me parece procedente a  crítica de Rui dirigida  a  uma espécie  de  gosto  e de submissão  eurocêntrica ou  americanófila  não só de hoje mas no passado. Sendo um vernaculista extremoso, um fascinado  pela língua  portuguesa,  um  prosador  clássico, que bebeu nas fontes de Vieira,  de Camilo e de Castilho, ou como  didaticamente, Enéas Martins de Barros definiu suas qualidades  de estilo de linguagem, ao dizer que de Vieira aproveitou   a correção, de Camilo,  o vocabulário de Castilho,  a harmonia. Alfredo Bosi ( na sua História  concisa da literatura brasileira) refere também, na aquisição de seu   estilo, as contribuições da cultura clássica de Cícero, Quintiliano, Isócrates e, em língua  portuguesa,  ainda  inclui a influência do potencial  léxico de Herculano, a sintaxe de Bernardes
         Diante de tais atributos estilísticos,  Rui tinha  condições  de  censurar  aqueles   que relevavam a sua língua-mãe a um plano  secundário com  relação   à  outras línguas modernas. Com o seu espantoso  conhecimento  da língua portuguesa,  podia-se dar ao luxo de dominar  outras línguas,  como  o inglês, o espanhol, o francês, o alemão.
       Me contou meu pai – admirador  de Rui a ponto de, em Amarante, PI,  fundar uma  escola  a que deu o nome de Ateneu  Rui Barbosa -  que, certa feita,  no tempo  em que  morava no Rio  como estudante  salesiano,  tendo ido a um colégio em Petrópolis, lhe disseram que há uma semana  ali  havia  passado  Rui Barbosa  em visita  ao colégio. Um estudante,   vendo Rui Barbosa caminhando por um corredor à sua frente,  lhe dirigiu  essas palavras: "Viva  o reverendo (sic!) Rui Barbosa!” Rui,  voltou-se para ele e lhe deu um sorriso. Houve uma  gargalhada geral dos coleguinhas  do  pequeno  estudante.
      Na Academia   Brasileira de Letras,  da qual  Rui foi  fundador  junto com Joaquim Nabuco,  Machado de Assis e Lúcio de Mendonça, meu pai  dizia que só  por  um acadêmico  Rui revelava   especial  respeito do ângulo filológico  e de polemista,  o  exímio latinista  Carlos de Laet.
      Na voz do povo, Rui  era o máximo, o mais  inteligente brasileiro de então. Nascera em  Salvador,  em 1845. Morreu em Petrópolis em 1923.
      Ainda me relatou meu pai,  em  costumeiras conversas  comigo em Teresina,  que, uma vez, indo para Petrópolis,  Rui  começou a  conversar com um companheiro de viagem  sobre assuntos  gerais,  os quais,  depois,   se voltaram  para  temas de  medicina. A uma  certa  altura do diálogo,  o companheiro de Rui lhe perguntou: “O Sr. é médico?” “Não, sou   advogado.” “Pois, senhor,  eu tinha quase a certeza de que o senhor era médico pelo conheci mento  que revelou ter dessa  área de  estudos.” 
      Perseguido por sua ideias políticas contrárias ao governo de  Floriano  Peixoto,   Rui viu-se obrigado a se exilar na Inglaterra.Logo que  pisou  em solo britânico,  Rui mandou afixar um cartaz  - creio -  no lugar em que foi  morar,  com os seguintes   dizeres: “Ensina-se inglês aos ingleses.” Esse período de residência em Londres, redeu-lhe uma obra Cartas da Inglaterra(1896).
     Jurista de fama  internacional, Rui Barbosa  teve o grande  privilégio de ser convidado  para representar o Brasil  na Segunda Conferência de Paz em Haia (Deuxième Conférence de la Paix. Actes et Discours, La Haye,1907), na qual  brilhantemente defendeu a situação das  “pequenas nações.” De sua  atuação formidável como orador   e  intelectual  de assombroso  conhecimento  jurídico, sendo aplaudido entusiasticamente por  diplomatas e estadistas presentes, veio-lhe a conhecida  antonomásia de  “O águia de Haia.”     
     Outra participação de alta relevância do grande estudioso, político, escritor,  tradutor   e orador  brasileiro  foi  a polêmica filológica   que travou com um seu ex-professor de língua  portuguesa de Salvador,  Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro a propósito da “Redação do Código  Civil Brasileiro.”  Dela   resultou uma obra   de alta profundidade filológica, Réplica (1903).        
     Essa  famosíssima  polêmica entre Rui e seu ex-professor de língua portuguesa merece uma síntese  de seus  fundamentos.  A raiz da polêmica   foi  a  redação do Código  Civil  a ser elaborado  pelo  jurista Clóvis Beviláquia  a pedido do  então Ministro da Justiça, Epitácio  Pessoa, no governo do presidente Campos Sales.  A redação  de Clóvis  Beviláquia  valeu-lhe  várias censuras  por parte de Rui Barbosa. Para contornar  esse impasse,  foi incumbido de  fazer a revisão do Código Civil o respeitado  professor, Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro.    
        Rui Barbosa, a despeito disso,   não  concordou com a revisão  feita pelo ex-mestre, sobretudo  no terreno da gramática e por isso apresentou, na condição de presidente da Comissão  do Senado,  várias  folhas de apontamentos  mostrando   suas discordâncias  gramaticais  em relação  à revisão de Ernesto Carneiro  Ribeiro, que, por suja vez, rebatendo as críticas de Rui, redigiu o texto “Ligeiras  observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa”   e o fez publicar no Diário do Congresso
       O Código  Civil  foi  aprovado, mas a polêmica entre Rui e seu  ex-professor continuou até que  Rui,  organizou seus  apontamentos  e suas  divergências  numa das obras mais  respeitadas  no  domínio da filologia  portuguesa, considerada pelos estudiosos  como um “monumento”  de estilo e de profundidade  de  conhecimentos  do vernáculo.  
      Foi a mencionada  Réplica. Seu ex-mestre, por seu turno,  não se deu  por vencido e resolveu  dar uma outra resposta  às censuras  de Rui,  fazendo vir a lume  a obra Tréplica, a versão em livro  criticando as emendas  que  Rui Barbosa lhe  fizera à  revisão do Código Civil de Beviláqua.
     Assim que cheguei ao Rio, em 1964,  adquirira um livrinho  das Edições de Ouro que constituíam  um apanhado de cartas de Rui Barbosa dirigidas à noiva, Maria Augusta. Não recordo mais do título. Contudo,  ficava admirado  do estilo  epistolar  de Rui à sua amada, com  comoventes  declarações de amor  e de  afetividade, escritas em estilo  menos   arcaizante,  menos clássico, e apenas  refletindo  o gênero  mais leve da comunicação  familiar  e amorosa. Li aquelas cartas de Rui no intervalo de viagens de  trem   do subúrbio  da Central para o centro do Rio nos meus primeiros  meses de vida nessa cidade.
         Me lembro de  que eram  cartas  cativantes  onde o  grande  escritor e homem publico  mostrava  seu lado  mais  íntimo de manifestar  seus sentimentos  com traços  até românticos. Me  vem à mente  outro livro que,  à época,  li de  Rui  Barbosa. Era um ensaio  biográfico  sobre José Bonifácio, um livro  digno  do melhor  estilo  ruibarbosiano. Esse ensaio  mencionei  no meu livro As ideias no tempo (2010).  E uma frase  dele me ficou marcada  na memória: “A morte nos cerca de todos os lados.” – sentenciava  Rui.   Outro  texto  fundamental que li de Rui é o conhecido “Oração aos Moços” -  um belíssimo  texto atualizado, na sua abrangência  ética, até para os dias de hoje.

        Por outro lado,  outra carta  de Rui que,  salvo erro,  li na obra  de Luís Viana Filho era uma carta  em inglês  de Rui a alguém no Brasil, não sei se endereçada a uma amigo ou a um familiar. Só relembro que a reprodução da carta escrita à mão, em fac-símile,   tinha uma letra miúda,  com  rasuras no corpo da missiva e, por incrível que parece, foi nessa carta que  aprendi o que em inglês  queria dizer a  linda  palavra "orvalho" (em inglês,“dew”), assim aprendida naquele contexto  epistolar e não num  texto  de uma  obra  de ficção ou poesia. A memória tem dessas coisas que nos surpreendem na aprendizagem de uma língua. Minha memória é visual, léxica,  fisionômica,  em geral sinestésica.

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