domingo, 29 de novembro de 2015

Elmar Carvalho: Poemas Inéditos*




                                                           Cunha  e Silva Filho

           No meu  ensaio de introdução à Lira dos cinquentanos[1] de Elmar Carvalho, antologia poética, não levei em conta o conjunto  de poemas da seção “Poemas Inéditos,” porque só fui conhecê-los depois de publicada a antologia. São nove poemas inseridos no corpus de poemas enfeixados na antologia.
        Desses  poemas quatro aparecem com data de composição, ou seja, “Chuva” (p.97), de 2002; “A cova do palhaço”(p.107-108), de 2005 e “Simbolismo” (p.111), de 1978, curiosamente, como  se vê, um poema antigo.
         “Pinheiros vistos  da janela” (p.109), “A um ganancioso morto” (113), “Guernica” (p.105-106),  Autoantropofagia” (p. 110), “Te(n)tação (p. 112) e “Viagem” (p. 114-118) não vêm com a data  em  que foram  escritos   os poema.. À vista desses dados informativos, me cabe fazer algumas  ponderações  de ordem crítica acerca desse  conjunto de poemas e ao mesmo  tempo procurar situá-los no conjunto geral  da produção poética do  autor.
    Da leitura desses  inéditos  há um aspecto que devo  apontar na  poética de Elmar Carvalho, i.e., vejo com satisfação que,  excetuando “Simbolismo,” de datação bastante antiga, segundo  assinalei atrás, embora seja um  poema de bom nível, os oito  poemas mais novos – pois  me parecem que os não datados são também  de fatura recente –  se me afiguram  sinalizar uma ultrapassagem de nível no trato do autor com o exercício da poesia. Vejamos por quê.
   Na ordem  em que os poemas aparecem na  seção de “Poemas Inéditos,” vemos, inicialmente, “Chuva,” um longo  poema, verdadeiro  hino à natureza, particularmente exemplificada no elemento “Chuva.” O poema me sugere uma sinfonia, uma orquestração formada de estrofes nas quais a extensão do  olhar do sujeito lírico abrange a paisagem humana e sobretudo o conjunto de objetos e seres da natureza em todos os seus ângulos e espaços  considerados.
       Entretanto, é  na dimensão da linguagem  poética  - fator determinante da sua  qualidade  – que, a meu ver,  o poema se qualifica como peça literária  original e de acabamento  refinado. Não hesitaria em considerá-lo um grande momento da lírica de Elmar, da mesma forma que no  poema  “Viagem,” que mais adiante comentarei,me deparo com outro  grande instante de puro e profundo  mergulho lírico  conseguido pelo  poeta, Em “Chuva”, todo o  poema se assenta nas suas múltiplas  possibilidades rítmicas, melódica,, musicais e sinestésicas.
       Aqui o poeta me parece ter logrado o enlace perfeito entre o significado das ideias e sua  forma de expressão  linguística. É bem verdade que Elmar, em  poemas anteriores, já tenha  empregado alguns   recursos estilísticos que se constituem em marcas  inconfundíveis de sua  poética, como  o ludismo sonoro-plástico-gráfico-sinestésico., o gosto pelas paronomásias, a palavra-puxa-palavra, a obsessão,  às vezes, exagerada pelas aliterações.
       O poema “Chuva” se distingue,segundo  acentuei anteriormente, pela sua  riqueza de sonoridades, de onmatopeias, sem se falar  no recorrente uso intertextual,  quer dizer, do diálogo com  outros  poetas, como é exemplo o verso “foi-não foi, foi-não foi tirado do poema de Manuel Bandeira (1886-1968), “Os sapos” da obra  Carnaval (1919),[2] através do qual, no Modernismo de 1922, o poeta pernambucano ironizava o Parnasianismo e principalmente, segundo Mário da Silva Brito,  "o pós-parnasianismo,” visando a alguns  poeta  conhecidos,  inclusive Olavo Bilac(1865-1918), numa das noites da Semana de Arte Moderna , no Teatro Municipal de São Paulo.
    A propósito,   esse  poema bandeiriano,  naquela Semana modernista, foi declamado  pelo também  poeta, diplomata e historiador  literário Ronald de Carvalho (1893-1935). Numa declamação feita sob os assobios, as zombarias do público reacionário que repetia em coro “foi, não foi.” O fato é narrado pelo  próprio Bandeira n o seu  Itinerário  de Pasárgada. [3]
       No segundo poema, “Canção Pastoiril de um Urbanóide,” o poeta  põe-se em choque com a modernidade  estabelecendo, ao final  do  poema, um contraponto a um tempo irônico e elegíaco entre as delícias e naturalidade da vida do campo e a solidão do concreto armado das grandes cidades.
       Em “Guernica,”  defrontamo-nos com outra alusão  intertextual, numa veemente crítica ao absurdo das guerras e da insanidade dos homens, destacando-se a estrofe com  palavras iniciadas,  iconicamente, pelo fonema velar sonoro, formando uma inventiva  estrofe aliterada quase  por inteiro, à semelhança   do célebre verso “vozes,  veladas,  veludosas vozes,”   que fazem parte de Faróis (1900) de Cruz e Sousa (1861-1898).
       Em “Pinheiro visto da janela,” de volta à natureza e a seus  elementos multifários, encontramos o lirismo como sinônimo de musicalidade, de sonoridades,  em versos cuja arquitetura vai ao encontro de imagens focadas nos seres inanimados, à procura de um sentido, cuja chave se encontra no próprio jogo das palavras  pelas palavras.
       Em “Autoantropofagia,” a lírica se desliriciza num  poema de corte surreal. No poema “Simbolismo,” com data, conforme indiquei anteriormente, de 1978, tem-se uma peça que se utiliza do recurso intertextual de cunho histórico, em que a longeva e milenar imagem da Esfinge egípcia, cuja figura aprendemos nos livros de História, ou mesmo  nas telas  do cinema, serve como  pretexto para uma  reflexão derivada de uma motivação também surrealista.
       Em “A cova do palhaço,” recorrendo também à citação alusiva (Heine), Elmar põe  em cena a figura de um  palhaço eslavo reduzida a um destino nostálgico e irremediavelmente  solitário. 
       O poemeto “Teia de te(n)tação, de recorte concretista, chama a atenção pelos recursos grafemáticos e espaciais, cujo epicentro do significado repousa na exploração de uma lubricidade porosa, solta, mas de grande efeito semântico-humorístico: “tateando/tenteando/tintilando/tuas tetas/caí em te(n)tação, entrei em tantação.” De resto, essa dimensão  jogando com o erótico- humorístico   já aparece  em outros  poemas de sua obra. Vejam-se-lhe os poemas  “Sex Appeal” (p51) “A ero moça” (p.56), “Sexo”(p.66) [4]       
       “A um ganancioso morto.” nos defrontamos com um  poema de clave filosófica, no qual se fala de alguém que, sendo ambicioso, de nada lhe valeu o apego à matéria.
       No último poema da seção “Viagem,” o poeta, mais uma vez,  escreve um longo e denso trabalho  de dimensão cósmica, universal. Poema abrangente, de andamento  épico -  recurso por ele já testado com sucesso mais de uma vez – no qual o sujeito lírico empreende uma “viagem” que vai dos elementos minimamente  divisíveis da matéria física, dos átomos, dos minúsculos recantos da natureza animal, vegetal e mineral, das superfícies da Terra às profundezas  oceânicas, da solidão do nosso  planeta às culminâncias planetárias, do profano  ao sagrado, da realidade histórica aos mitos. Não satisfeito, o poeta adentra o universo misterioso e encantatório da astrologia, criando magníficas imagens para cada  signo do Zodíaco.  
       São tantas as incursões em universo  vários  que esse  poema nos lembra o complexo universo das partículas  quânticas. Penso que esse  bem urdido  poema, pela ascendência literária,  tem  um  pouco a dever, mutatis mutandi,  em inspiração e tema ao Zodíaco (1917) de Da Costa e Silva (1885-1959).
       Digo  isso porque o poema de Elmar consegue combinar componentes   e aspectos diversos da natureza, emprestando-lhes alcance universal e sentido de ubiquidade. Entretanto,  essa “viagem” cósmica, entremostrada pela sua   poesia, não o leva a uma postura  cética de criação do Universo. Sua poesia vai -  célere -  a um encontro de natureza confessadamente  cristã. Sua  viagem é cósmica – devemos reconhecer -, mas seu encontro é com  Deus.
       Os poemas que aqui apenas  esquematicamente  comento dão, sim, sinais evidentes de que Elmar Carvalho – um dos melhores  poeta contemporâneos do Piauí - , ainda demonstra  muito  vigor e veia  poética para novas   incursões nos domínios do verso de qualidade.




[1] CARVALHO, Elmar. Lira dos   cinquentanos. 1. ed. Teresina: Fundação de Apoio Cultural do Piauí – FUNDAPI, 2006.
[2] BANDEIRA, Manuel. “Os sapos.” In: ___. Carnaval. (1919). Cf. BANDEIRA,   Manuel. Poesia  completa e prossa . Org. pelo autor.  Rio de Janeiro: Editora  Nova  Aguilar S.A, 1986. p. 158-159.
[3] Idem, p. 59.
[4] CARVALHO, Elmar. Rosa dos ventos  gerais. 2. ed. rev. aumentada e melhorada. Teresina: SEGRAUS – Serviços Gráficos do Tribunal de Justiça do Piauí, 2002.

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