quarta-feira, 6 de maio de 2015

Apenas memórias (11)




                                                 Cunha e Silva Filho



   Tendo deixado  o  Hospital  Pedro Ernesto, já curado   completamente   da anemia,  pensava  comigo mesmo  naquela  vaga  que, pela segunda vez,   aluguei na Rua  Jorge  Rudge. “E agora?” O dinheiro da indenização  está acabando. Tenho que   pensar  num novo lugar  para  morar.”  O meu  irmão Winston  já tinha  regressado pra  Teresina. Estava eu  sozinho. Não voltei  pro Diretório Acadêmico  de engenharia da PUC-Rio.
  Alguém  me havia indicado  o  restaurante do Calabouço, lugar onde se podia como estudante  comer de graça. Isso seria parte da solução  de alguns problemas  pessoais. Lá fui ao  conhecido   restaurante pela  primeira vez. Senti  um alívio,  porquanto ali  estaria  assegurada  a minha  alimentação. Um estudante,   que por acaso  conheci no Calabouço, me falara  que, na Rua Augusto Severo, onde hoje existe  o edifício  do Instituto Histórico e  Geográfico Brasileiro,  havia um  espécie de irmandade   administrada  por  um ordem  religiosa  espanhola que   alojava  jovens  estudantes,  ou não, gratuitamente. Bastaria que   me dirigisse ao  superior. O informante me dera aaté o nome  desse superior e o número  da rua. Sabendo do nome da ordem, fui à Biblioteca Nacional  pesquisar sobre ela. Reuni dados  importantes e redigi uma carta ao superior pedindo-lhe   uma  acomodação  na irmandade. Para agradar  ao desstinatário,  historiei  os feitos da ordem exaltando-lhe   as qualidades,  o espirito  de  solidariedade e de amor  ao próximo.Aguardei alguns  dias e me decidi  a ir até o local  falar  com  o superior. Indaguei se ele havia  recebido  minha carta. Dissera que sim e que, se quisesse , poderia   mudar-me pra lá naquele mesmo dia. Fiquei contentíssimo., já que   resolveria   o meu problema de  moradia.
  Saí da vaga   da Jorge Rudge e, com mala e cuia,   peguei  um ônibus  até a Cinelândia, que ficava perto da irmandade. Fui recebido   pelo  superior  de forma  quase fria não antes  sem ouvir  uma  afirmação  irônica  da parte dele: “Sua carta   li com cuidado, mas não precisava  encher  o pedido  de tanta  linguiça,  meu jovem.” Era no início da noite  quando  cheguei . O religioso  então  me fizera  algumas  exigências: “Você tem aqui uma casa num quarto  pequeno, mas todo dia  terá  que fazer  a faxina  da irmandade junto com   outros   jovens alojados.” O que me recomendou  não me  deixou  contente. Achei, na época, uma exploração. Supunha que  queria  me fazer de  criado. Não aguentei. Apenas dormi um dia  na irmandade. Em geral, durante a vida,  com   poucas exceções,  me decepcionei  com  gente religiosa, e aí se incluem padres,  frades,  pastores etc. Por outro lado,  tive e tenho vários amigos  que se dizem  ateus e são, no entanto,  pessoas  sensíveis,  solidárias, afetuosas. 
    No Calabouço, conheci  um jovem  educado e  prestativo. Era, por coincidência, de Amarante,  a minha  terra natal. Creio que  pertencia à família  dos Vilarinhos. Este jovem foi uma espécie de anjo  que desceu das Alturas  pra me salvar  num momento  de aflição. Ele, que não era  frade nem  religioso de irmandade alguma,  me recomendou  um  lugar pra moradia. Tratava-se da CESB (Casa do Estudante Secundário  Brasileiro). “Você, Francisco,  pode  ir hoje mesmo lá e falar com o presidente atual, o Dirceu.Ele vai ajudá-lo seguramente. Assim o fiz.
  A CESB ficava na Rua  Senador  Pompeu. Sobre este porto seguro,  que  a vida de estudante  me  prodigalizou, devo  afirmar que ele   mudou  completamente  o estado  de  solidão e de  carências  de toda a sorte que  estava enfrentando. O Dirceu me recebeu  com  muita boa vontade e me assegurou   que  a Casa  já tinha uma vaga  pra mim. Podia fazer a mudança. Minha  esposa, hoje me diz  que aquela  Casa de estudantes secundários  tinha  um valor  de um palácio , de ponto de apoio,  de  sossego  e alegrias  que  ainda  iria  sentir  durante a  minha permanência   nela.Como  preito de homenagem  ao  período de tempo  em que nela residi, transcrevo um  longo   texto onde  descrevo  o ambiente  humano   e de companheirismo  que  lá  encontrei, a que dei um título de “Mocidade da  CESB: Memórias”

     Lembro-me como se fosse hoje dos dias em que lá cheguei carregado de livros. Tivera que tomar o trem da Central uma três vezes para transportar meus muitos volumes de Vila Isabel ao Centro do Rio. Felizmente, fora mais fácil porque a CESB localizava-se bem próxima da Estação Central do Brasil (1)
    CESB é a sigla que representa o edifício velho da Casa do Estudante Secundário do Brasil, situado na Rua Senador Pompeu. E é para lá que me volta a atenção, para os dois anos e meio  que dela  fui   morador.
    São muitas as recordações que, por serem tantas, como que me obrigam a ordená-las no papel a fim de que não sejam vítimas das “verba volant...”
    Muitas me vão escapar à memória, não porque deliberadamente deseje, mas porque as memórias, como bem observou Álvaro Lins, são mais próprias para a velhice. É sabido que os velhos se recordam mais facilmente do que ocorre no passado e menos facilmente do que aconteceu recentemente.
    O que me vai interessar aqui é a rapaziada contemporânea dos meus dias vividos na boa Casa. A ordem em que vão aparecer neste artigo não significa maior ou menor apreço, se bem que, em qualquer lugar onde deixamos saudades, há determinados indivíduos que nos caíram mais na amizade e admiração.
    É o caso de Antônio Almeida, baiano, rapaz humilde, que entrara como residente bem depois de mim. Figura singular de jovem. Moço de cor. Era apelidado de filósofo. Companheiro inseparável de volumes de filosofia, psicologia. Atente-se para a circunstância de que ainda era estudante do curso secundário.
    Espírito boêmio, apaixonado do conhecimento humano. Lia tudo, desde filosofia, psicologia, história (suas preferências) até a alta literatura universal: Victor Hugo, Sartre etc., além de ser grande admirador de línguas estrangeiras, inglês, alemão, francês, e apaixonado da música clássica. Fazia tudo, até implorava à vezes para que fosse com ele ouvir Beethoven, Mozart, Schubert a Discoteca Pública, da qual era assíduo frequentador. A par dessas qualidades, era um excelente amigo. Espírito cético, não acreditava nas amizades superficiais, imediatistas. A amizade por ele compreendida por ele vinha da análise detida das pessoas, do comportamento delas. Fora-lhe bem acertado o apelido.(2)
    Dirceu Regis Ribeiro era outro residente daquele lar estudantil, com a diferença de que era o diretor da Casa na época em que cheguei. Alma enamorada das Musas. Leitor assíduo de Castro Alves, o seu poeta predileto. Devotava ao “Poeta dos escravos” um culto fora do comum. Parecia-me, na época, que, para ele, a literatura brasileira começava e parava com a poesia do condoreiro. Alimentava veleidades de orador. A sua voz era vibrante, a sua personalidade era atraente e, por isso, impunha-se entre os colegas como uma espécie de líder. Praticava o verso, versos profundamente influenciados pelo estro do vate de Espumas flutuantes. Dirceu chegou mesmo a publicar, segundo me informaram , um livro – O canto do Calabouço - inspirado em questões políticas (uma outra faceta dele eram os problemas políticos, as questões sociais).
   Quando, certo dia, lhe havia dito que fora aprovado no vestibular da Faculdade Nacional de Filosofia, para o curso de Letras, recebi dele um emocionado abraço à porta do restaurante daquela instituição superior de ensino.
   A política, atraindo-o cada vez mais, absorvia-lhe outras atividades, como a de aluno da Faculdade de Filosofia Gama Filho, cujo curso de Letras começara. Procurado pela polícia, em virtude de seus discurso inflamados, em praças públicas, contra o governo, desapareceu das suas relações de amizades no Rio... (3)
   Outra figura interessante da Casa era o Raimundinho. Maranhense, baixinho, magrinho, sofria de gaguez. Raimundinho tinha pruridos de ser cantor. Só falava em mulheres bonitas, em namoradas suas, “as minhas fãs” – dizia ele -, em conjuntos musicais, em gravações de suas composições cantadas por ele próprio e que jamais apareciam... Figura cômica. Era o banco da Casa. Emprestava dinheiro a todos, poucos lhe restituíam o dinheiro. Gostava de andar bem vestido, por isso, trabalhava numa companhia, se não me engano, alemã, que ele dizia estava prestes a falir. Raimundinho, além disso, era amante das moças estrangeiras. Por isso, arranjava muitos pen friends da Suécia. Dizia que escrevia as cartas em inglês...
   Tinha pouca instrução. Não era boa cabeça para os estudos. Disseram-me que não havia jeito de passar do 2º ano ginasial. Não parecia, porém, ter complexo de inferioridade. Acreditava sinceramente nos seus dotes de cantor e compositor. Conhecia artistas de música popular.     Fazia amizades com maestros, compositores, gravadoras etc. Só vivia metido em shows de juventude preocupada com as tendências modernas da música popular. Acordava cantarolando. Raimundinho proporcionava alegria. Todavia, intimamente, nos causava pena.
   Quando soube que eu gostava de inglês, não me deixou mais em paz. Pedia constantemente que lhe fizesse cartas para as suas fãs no estrangeiro. Também me pedia para traduzir as respostas das cartas. Até havia fluência quando me ditava oralmente as suas cartas. Em razão desses favores, se me tornara amigo.
    Raimundinho nunca poderia ser olvidado das minhas reminiscências da CESB(4).
   Outro rapaz da Casa era o João Ernesto, paraibano, gordo, baixo, moreno, sempre sorridente quando se dirigia a alguém. Inteligente, ninguém podia. Na Paraíba chegou a ingressar num seinário e lá passou alguns anos. Depois, saíra. Veio para o Rio. Era tido como conhecedor de latim (ai dos que saem dos seminários, pensa-se logo que são latinistas...).
  De vez em quando, não sei se para testar-me, perguntava:
-Como você traduziria esta sentença: Homo homini lupus? Onde é que está o verbo, que não vejo?
   João queria ser médico. Arranjava cursinhos para se preparar ao vestibular. Diziam-me que João, assim que ia estudar na biblioteca do Ministério da Educação, costumava dormir pesadamente (era um bom garfo, batia duas ou três bandejões do famoso Calabouço), esquecido das fórmulas químicas e dos intrincados problemas de física.
Tentara o vestibular.. Não passara. Ficara como excedente. Pouco tempo depois, ingressou por concurso nos Correios e Telégrafos. Só vivia se inscrevendo em concursos públicos: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
  Os outros moços da Casa eram muitos, todos de fora do Rio. Não havia um carioca. Eu era o único piauiense até então.
   O Marinho, rapaz inteligente, era meu companheiro de estudo durante horas a fio naquela sala de leitura da Casa. Marinho, preparava-se para ingressar no curso de Engenharia;eu, para o de Letras. Marinho hoje cursa o 4º ano de Engenharia na Faculdade Nacional de Engenharia. Da Universidade do Brasil. Exemplo de moço pobre que, vindo de Goiás, vence brilhantemente neste mundo de concorrência, que é o Rio de Janeiro, sofrimento de muitos jovens incautos. Só pelo seu valor conseguiu um lugar ao sol no importante ramo de estudos, que é a Engenharia.(4)
   José Almeida, baiano, simpático, ótimo companheiro, encaminhado já para o curso de Geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Sebastião, outro lutador, conhecido como Tião. Desejava ser engenheiro. Conseguira entrar na Engenharia Operacional. Amigo do carnaval, gostava de sambar em plena rua do Centro da acidade. Atualmente, leciona matemática.
    Francisco de Paula, muito político , amigo de Dirceu, de ótima memória, estuda atualmente Medicina em Córdova, na Argentina. No Brasil, não tentara o vestibular.
Domingos, goiano, muito alto, mulato, queria por força ser diplomata. Vive ainda na Casa , bem como o João Ernesto.
   Jordão, pernambucano. Pobre Jordão, sempre procurando melhorar de emprego, sempre em luta pela vida. Fez curso médio de contabilidade. Era protestante. Dizem que hoje está dando aulas no Estado do Rio. Político arrebatado. Tanto ele com Tião e Jordão não eram mais novinhos como os demais.
   Não podia, entretanto, deixar de mencionar o nome de Raimundo Durans (ou Durães?), conhecido como Chapu, Chapô e outras alcunhas. Talvez o mais velho morador da Casa. Maranhense. Acho que nem primário completo tinha. Entrara na Casa através de amizades. Era muito pobre.Figura excêntrica, inconfundível, brumosa, misteriosa. Diziam-se dele muitas coisas fantásticas.
   O seu leito ficava no alto da parede, perto do teto de uma salinha. Sua cama era pregada na parede. Chegava até ela por uma escada. Tipo de desequilibrado inteligente, incompreendido, desajustado do meio. Falava sozinho pelas ruas. Em casa, não perturbava ninguém. A sua presença não era quase notada pelos moradores. Só andava de gravata e camisa de mangas compridas.
  Para sobreviver, trabalhava numa alfaiataria, possivelmente como auxiliar de alfaiataria. Nunca soube ao certo. Era ele quem fazia consertos em nossas roupas a preço camarada. Chamavam-no também de filósofo. Só vivia enfurnado num quartinho no qual cabia apenas a sua pessoa. Ali era seu laboratório, a sua biblioteca, lugar onde matinha seus arquivos.
  Chapô tinha respostas para todas as questões da vida. Considerava-se numa fase mental superior a todos – dizia ele. Aquela fase havia atingido, segundo ele, a custa de muito estudo e disciplina mental.
  Certa vez me mostrara um recorte de jornal com um artigo de sua lavra. As suas leituras eram livros de filosofia oriental, livros de conteúdo nebuloso. De quando em vez, me mostrava uns desenhos multicoloridos, com traçados geométricos complicados.
  Cada linha, horizontal, vertical, inclinada, pontilhada, representava uma porção de problemas e questões filosóficas. Criticava o governo, os homens atuais, as mulheres, a socieddade, tachando tudo de corrupção, rematando os seus pontos de vista com uma série de palavrões.    O ser humano para ele era apenas a vítima inconsciente das conseqüências desastrosas de um estágio atrasado.
-São uns inconscientes – dizia ele. Como podem homens ser dominados por mulheres?!
Uma vez, fora preso porque atacara o Exército nas barbas do Ministério da Guerra. Raimundo ainda vive n a veneranda Casa[v]

NOTAS

(1) ] O tempo de escrita destas memórias remonta aos anos setenta do século passado. Por outro lado, o tempo da narrativa transcorreu nos meados da década de sessenta. Os dois tempos abrangem o período da ditadura militar.
(2) Pouco depois que me casei (1967) e deixei de morar na CESB, soube que Antônio de Almeida tinha entrado para o Exército e atingido a patente de sargento. Mas, a nota estranha e trágica que me chegou ao conhecimento foi a de que, um dia, o meu querido companheiro da CESB fora encontrado morto em Copacabana. Tinha sido baleado. Nunca fiquei sabendo o real motivo de sua misteriosa morte..
(3) Não mais tive notícia do querido companheiro. Portanto, não sei se ainda está vivo e o que fez da vida.
(4) A respeito de Marinho, soube que teria, depois de formado, ido para São Paulo, onde iria trabalhar na área em que se graduara. Acredito que tenha feito uma boa carreira como engenheiro
(5) Anos mais tarde,no Centro da cidade, vi o  Chapô.. Ele estava conversando com alguém. Era dessas pessoas que não o largam quando por acaso o encontrem. .Depois, nunca mais o vi. (Continua)

     

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