quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Pregando, solitária, contra a Igreja








                                               Cunha e Silva Filho


             Passando por uma  famosa  igreja do meu  bairro, reparei que   o portão se encontrava  fechado ou, no mínimo,  as duas   divisões de ferro estavam  bem encostadas. Estava com pressa  porque  ia ao dentista  com hora marcada. No entanto,  pude ouvir algumas palavras  de uma mulher ainda jovem ,  usando óculos, meio morena,  de altura mediana, vestida  de forma simples,falando de dentro do adro para quem  passasse  pela calçada  que dá para a entrada  principal  daquele  templo  religioso. Chamou-me a atenção porque a igreja estava fechada  e parecia  não haver ninguém  lá dentro.  Este o primeiro  sinal  estranho  da presença  solitária daquela  mulher. Via-se visivelmente que  estava fazendo um  “discurso” de protesto. Ora,  ali  não era nenhum Hyde Park  londrino, com o seu  famoso  Speaker' Corner, onde pessoas  podem  usar da palavra  para  discutir  questões   importantes  ou não, nem tampouco  estávamos  na Praça da Cinelândia, perto da  bela estátua  de   Carlos Gomes. Esse era o segundo sinal de  estranheza.
          Um terceiro sinal  mais   contundente era  o conteúdo  de algumas   palavras ou frases  do seu  enunciado solitário e de contestação. “Santa Madalena! Lugar  profano! Imagens  não têm  nenhum  valor”  Não passava de uma prostituta. Como acreditar  em  imagens?"  Via-se que  a  verborreia estava exaltada,  indignada,   pronta ao confronto. O resto do que  teria  dito  não foi alcançado  pelos meus ouvidos porque,  segundo   já  afirmei,   estava  com pressa.
         O que me intrigou  no  incidente  presenciado   em  instantes  de minha  passagem  transitória era  o lugar que  aquela mulher  contestadora  havia  escolhido  para desancar   verdades históricas do  Novo Testamento. Era a audácia da mulher  que, no adro   da igreja católica,  proferia  impropérios contra   princípios e dogmas  católicos  nas barbas de Cristo.
         É bem  possível que o  portão só estava  encostado  para que a mulher ali adentrasse e  ferisse  verbalmente  um templo   santo. Vivemos  atualmente a era dos protestos,  justos ou  injustos.Todavia,   a figura estranha  e um tanto   fantasmagórica daquela  mulher ainda jovem  me  desconcertou. Tive ímpetos de parar  para ouvir mais o que tinha  a dizer aquela   criatura  com  olhar  desvairado, desse  olhares muito  próximos  do que  poderíamos  chamar   fanatismo – essa praga que se alastra em  muitos setores  da vida coletiva de muitos países,  inclusive do  Brasil.
        Por que razão ou razões   de sanidade  ou  de  loucura uma mulher  sai de sua casa , entra, não sei como ao certo,  num  templo católico   e começa a  se manifestar   no espaço da própria  igreja  católica?    Seria  uma personagem   saída  do conto “O alienista,” de Machado de Assis?
        Se, no plano de sua convicções  religiosas, ali estava era porque não  era católica. E por que  escolheria logo  um dia em que a  igreja  estava  vazia  quando,  em dias  normais,  fica apinhada  de fiéis, iluminada  e com  seus  coral   que enternece  as almas presentes  nos dias de missas  ou de novenas?
      A questão  do uso das imagens  simbolizando  iconicamente  os santos e a Família  Sagrada faz parte da tradição  católica e não é  contraditada por nenhum de seus   seguidores. Não vejo  nenhuma    contradição ou como  uma ato de blasfêmia o uso das  imagens sagradas cristãs,  posto que  tenham  sido historicamente   usadas   para  figurarem   deuses pagãos. Assim também se incluiriam  o  uso da cruz e outros elementos  que  fazem  parte do ritualismo   católico. Não são, pois,   heresias contra  as concepções  cristãs. Veja-se o exemplo da  imagem de um  ente querido ou de um amigo  na forma de  pintura,  de  fotografia ou de outro  meio  visual.O que há de errado em apreciá-los?
       Há algum mal em  sentirmos felizes de vermos  essas imagens?  Na realidade, amamos  o ser físico e espiritual  do ente querido. Porém,  a foto,  o retrato de alguém  que amamos  fazem parte de nossa memória visual  e afetiva. Não seria talvez  muito  desolador  se não houvesse  os pintores, os retratistas, os paisagistas que  eternizam seres   humanos e elementos da natureza? 
    O snapshot  de uma  imagem de alguém  feito num  determinado   espaço e tempo  passado tem  muito  peso em nosso mundo   interior,  visual,  gestual, plástico, sonoro. Veja  a vida  injetada  no mundo da ficção pelo poder  mágico  da força  narrativa de um  grande escritor como  Marcel Proust e tantos outros em todas as literaturas  do mundo.
     Ao valorizar  o emprego, nos templos   católicos, por exemplo, da imagem de um santo,  ou  do Criador do Universo,  ou da Mãe  Santa  de Cristo, a Igreja  não  prega  a adoração  de  imagens em si. Quem diria,  pergunto – que o  objeto em si não tem a sua interioridade como parte  metonímica  da Totalidade do Universo  que significa e  é  significada?  A verdade da imagem  está  na sua associação   com a transcendência,  com o que denominamos  espiritualidade.
      As imagens fotográficas,  as gravações  fílmicas,  a  pintura,  a escultura,  a dança,  o cenário  do teatro,  a música,  as linhas  da pintura  não-tradicional  fazem  parte  de nosso  universo   afetivo, de nossa memória,  de nosso  repertório  multifacetado. São partes  da nossa cultura,  da grandeza da dimensão material  e  imaterial. Todos esses  componentes de nossos sentidos  constituem  uma espécie da  unidade   signficante/significadora  do visual  e do divino. Separá-los  é que  é, sim,   uma heresia, uma douta ignorância.
     È o desconhecimento  desse outro lado da moeda que possivelmente leve   alguém  como  aquela mulher que encontrei por acaso     em pleno adro de um  templo sagrado com  olhos desvairados, movida, quem sabe,  pelo  fanatismo nocivo que, aos olhos do  transeunte,  pode parecer  o discurso  da alienação.     




























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