quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Entre o real, o virtual e o espiritual



            

                                    Cunha e Silva Filho


              Vivemos num mundo  asfixiantemente impessoal, cercado de gadgets,  de aparelhos  de comunicação,  numa palavra,  de máquinas eletrônicas, afora todas  as   consequências do espaço virtual em que  estamos afundados até o pescoço.Em casa,  dominam o computador,  a televisão,  o rádio,  os tablets,  os celulares.O reino, se assim podemos  chamar, da virtualidade tem algo de mágico, mas é um mágico da  objetividade,  das distâncias do “eu.”  Quem com ele mais se afina são as  novas gerações,  as crianças de agora,  que parecem  nascer já com  a vocação  de lidar  com  todas  esses equipamentos  eletrônicos, ao passo que os mais velhos,  os bem velhos  sobretudo,   sentem  um certo  receio de se aproximarem  desse novo mundo. Com eles não se  identificam, podem até  deles gostar ou odiar, quem  sabe.    
            Na rua,  pessoas falando  em celulares, absortas  nos  seus problemas  pessoais mais imediatos, mais parecendo  estar falando  sozinhas como se fossem   loucos. Realmente,  antes do advento dos celulares,  quando  alguém,de repente,  passava ao nosso lado falando  sozinho,  a única conclusão que  tirávamos era de que se tratava de um  desvairado conversando sozinho. Hoje,   já não nos causa  tanta   estranheza quando alguém  fala ao celular. Quer dizer,  nos habituamos  aos poucos  com  a força  e a  influência da tecnologia.Há poucos anos,   saíam  notícias de que  o uso  imoderado de celulares  causaria  câncer nas pessoas.Agora,  ninguém mais fala  nessa possibilidade. Às favas,   o mal  que possam  causar, o que  querem mesmo  é falar,  falar, falar.
Porém, não é este  exatamente o assunto que me traz  a esta coluna. O que lhe quero  relatar,  leitor, é algo   que está acima do puramente  racional,  lógico,  cartesiano. É algo que  se situaria  na esfera da fé religiosa.  Tem-se fé ou não se tem. Acredita-se em Deus ou não,  quando  nos alinhamos  aos ateus. Ou, seguindo   outro caminho, não podemos  afirmar  nem negar a existência de Deus,  o que nos poria na posição  de agnósticos. Ficamos, neste caso,  em cima do muro.Neste domínio da fé e do espiritual, já mesmo  ouvi  dizer que alguns padres – acredito que são  bem poucos -  não  acreditam  piamente em Deus.
Em questão de fé,  acho admirável quem  tenha   esse  sentimento, com toda a força  de sua convicção. Me emociono profundamente  quando  vejo  alguém  orando e, no seu olhar, percebo claramente  a pureza do  senti mento que lhe vai  na alma, no semblante,  nos  gestos,  nas atitudes. Vejam  os peregrinos  no  interior do país. Veja os devotos dos santos   padroeiros,  veja  a multidão  nas catedrais,  nas igrejas, das mais   ricas e belas às mais humildes. Veja ainda  os devotos  do  padim  Ciço, os peregrinos  de Aparecida..Veja os peregrinos  que  visitam  o  Vaticano, a Basílica de São Pedro e querem  receber a bênção papal. Veja os que creem  nos  três  pastorinhos  de Fátima, em Portugal.  Veja os que  viajam a Jerusalém, a fim de  percorrer os mesmos caminhos   trilhados  por  Jesus ou visitam  a  Igreja do Santo  Sepulcro, ou o lugar  do Horto das Oliveiras, ou vão a Nazaré, ou  molhar os rostos  no  rio  Jordão, ou orar  junto  ao Muro das Lamentações.
Quem  não se comove  ao ler o Velho e o Novo  Testamento,  ou as hagiografias  dos santos  famosos,  ou as leituras  de Santo  Agostinho?  De Tomás de Aquino? Ou a Oração de São Francisco de Assis? Quem  não se enternece também  com aquele  conto    maravilhoso de Eça  de Queiroz,  o “Suave  Milagre?” Quem  não aprecia  os poemas religiosos  do padre  José de Anchieta?Quem não  se sente confortado  e protegido  com as  orações   da Ave-Maria  e do  Padre-Nosso? Acredito que até os ateus...
Hoje mesmo,  pensando  haver perdido  minha identidade,  fiquei  desesperado e pus toda a família em  polvorosa,  com  todos  procurando,  em  lugares  os mais    impensáveis, onde eu havia  colocado  a  identidade. Chegamos ao  ponto de  sair de casa e perguntar nos lugares   por onde  andamos, um restaurante  na vizinhança,   a livraria do Shopping, uma farmácia  onde  compramos  um remédio. E nada de alguém  dizer  que havia   encontrado  o objeto.E olhe, leitor,  que  só hoje dei conta  de que  a identidade tinha  sumido. Contando  os dias,   a provável  perda  teria  acontecido no domingo,  dia  3 de agosto. E só dei conta do sumiço  da carteira  porque   hoje  teria que ir ao banco  pagar  contas. Um Deus-nos-acuda.  De  repente,  me vem à lembrança  aquele santo  popular,  São Longuinho, que, segundo  informações colhidas no  Google,  só é  reverenciado  na Espanha e no  Brasil. As origens  dele  são  imprecisas. Contudo,  teólogos  e estudiosos  de hagiografia  afirmam  ter sido ele um  centurião  romano, de nome Cássio,  convertido ao  Cristianismo e por isso  foi martirizado. Ao se converter,  fugiu para  Cesareia e, ao ser descoberto,  foi  decapitado.
   Conta-se que, na condição  de soldado   e escolhido  para  vigiar Cristo na Cruz,  acertou  o  coração  de Jesus  com uma lança e, ao fazer isso,  recebeu um jato de sangue nos olhos. Acontece que Cássio sofria de uma doença da vista. Há relatos de que sofria de ‘cegueira  espiritual,’ segundo informa o padre Aparecido Pereira, pesquisador  da vida dos santos.” O respingo do sangue de Cristo  curou-lhe a enfermidade. “instantaneamente.”
Regressando pra casa, outra maratona vasculhando  tudo, armários,   gavetas,   livros,  papéis,   envelopes etc. etc. Nada de aparecer  a identidade.  Entretanto,  enquanto   procurava  a carteira de identidade,   me veio a ideia de invocar a ajuda  de São Longuinho.Só no meu íntimo  passei a lhe pedir que  me fizesse  encontrar  o objeto  desaparecido. Me deu  vontade de reabrir um dos armários, revirei umas   pastas e, vendo tudo  com cuidado,  tive a  impressão de que do nada surgiu a carteira de identidade. Gritei: São Longuinho! São  Longuinho!  Obrigado! 
 Tudo  à nossa volta    serenou. Chorei lágrimas de  felicidade,  de alívio,  de saber que,  não  encontrasse  a identidade,  teria  aqueles problemas todos que o  brasileiro   tão bem conhece:   ir à Delegacia de Polícia fazer o boletim de ocorrência  do  objeto  perdido; o medo  que se tem  de um objeto  dessa espécie   cair  nas mãos  de  marginais; tirar  foto para  um novo pedido de   identidade, enfim,  uma série de problemas.  
Desgaste inútil   andando  pelas  ruas e lugares  em que  poderia  encontrar  o objeto  perdido. São Longuinho  foi a salvação da pátria,  ou melhor, do lar. A história de São  Longuinho  é folclore? É. É uma simpatia  popular entre nós? É. Mas,  a verdade é que a  fama desse Santo  querido e amado já correu  país afora.  Já é antiga e a minha   esposa  me conta que a avozinha dela  costumava  invocar  São Longuinho nas horas do  aperto,  i.e.,  nas horas  das perdas, assim como ainda  falava  aquela avozinha que,  ao se  receber  o milagre,  a agente tem que  dar  três  pulinhos e dizer três vezes: “Obrigado  São Longuinho.”

Folclore  ou não,  o certo é que São  Longuinho me  salvou: “Suave milagre.”

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