sábado, 2 de fevereiro de 2013

O Beijo de Judas: o Inferno de Santa Maria





Cunha e Silva Filho



Foi uma traição à vida o que aconteceu na Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul.. Que nome menos adequado para se dar a uma boate. Beijo é sinal, antes de tudo, de amor, de afeto, de amizade. Não é palavra que se tome para um lugar onde tudo estava fora do lugar, principalmente a documentação da casa de diversões, com alvará já expirado, e onde nada em termos de segurança funcionava: extintores de fogo, pelo menos duas portas de saída, e outros requisitos obrigatórios de ordem técnica, respeito legal à capacidade de pessoas que ali podiam se reunir

Por cúmulo da irresponsabilidade, mesmo com todas as irregularidades verificadas pelos peritos e pelas declarações consistentes do delegado encarregado das investigações, a boate tinha (sic!) autorização do Corpo de Bombeiro para funcionamento normal. Nada foi observado, na última fiscalização do órgão competente, do ponto de vista legal, nem da Prefeitura local nem do Corpo de Bombeiros. Era uma boate como tantas outras espalhadas pelo país que funcionam ao arrepio da Lei, das autoridades, dos governo federal, estadual e municpal. Até já se falou que os maiores responsáveis não são os donos da boate mas a autoridade pública, que é leniente e, muitas vezes, se torna cúmplice pela ausência da aplicação das penalidades contra lugares de diversão como esses.

Faz parte da cultura do poder público brasileiro só tomar medidas contra erros imperdoáveis e fatais e semelhantes ao ocorrido em Santa Maria quando a tragédia acontece. Por isso, o lamento de governantes, suas lágrimas vertidas, seja do prefeito, do governador, seja da presença da Presidente, esta com discurso lacrimejante e sentindo a perda coletiva de inúmeros jovens que poderiam ser, no futuro, pessoas de diferentes profissões úteis à sociedade e ao desenvolvimento do país, não vai reverter a dor das famílias enlutadas e destroçadas nos seus sentimentos mais profundos, que é a dor de perder um ente querido, um amigo, até mesmo um conhecido habitante da mesma cidade.

Portanto, a tragédia de Santa Maria não é novidade para o país das tragédias e das impunidades, da desídia pública e da ausência gritante de medidas preventivas, de seriedade no trato da coisa pública e privada .São mais de duzentos mortos, são mais de duzentos jovens cheios de viço de alegrias, de sua condição de universitário, que é uma das fases da vida do estudante mais decisivas e emocionantes de suas vidas. Vale encarecer que dos sobreviventes feridos, muitos estão ainda nas UTIs dos hospitais, ainda com risco de morte, outros mais com corpos queimados, que lhes deixarão com marcas indesejáveis sobretudo na fase da juventude e mocidade.

Morrer jovem, por doença é sempre uma perda irreparável, mas morrerem tantos jovens a um só tempo e de maneira brutal, sofrida, desesperadora, é mais do que uma tragédia. Eis por que a tragédia de Santa Maria teve tanta repercussão(negativa para a imagem do país) internacional, dadas as proporções do número elevado de vítimas fatais.

Lugares de diversões, prédios, velhos ou novos, construções tombadas pelo patrimônio público têm que ser rigorosamente fiscalizados, e, quando forem detectados sinais de risco de vida, devem ser seus responsáveis enquadrados na Lei, com pesadas multas, sendo que as autoridade competentes devem imediatamente determinar prazos improrrogáveis a fim de que sejam corrigidos os erros e os riscos. É uma obrigação não somente dos prefeitos, mas dos governadores e da União. A sociedade deve também assumir a sua parte através de denúncias aos órgãos correspondentes caso veja algum perigo iminente que possa prejudicar a população da cidade, dos bairros.

O Brasil é campeão de remendos, de improvisações, de tapa-buracos, de obras faraônicas vultosas paralisadas de repente, com altíssimos custos para o Erário. Por que não imitamos o que é bom do EUA, do Japão e dos países que preservam, fiscalizam e penalizam os infratores em áreas que podem provocar mortes de centenas ou milhares de pessoas? Deixemos de chorar as nossas calamidades e previnamo-nos contra os desastres evitáveis e mesmo inevitáveis, diminuindo-lhes as consequências desastrosas, como no caso de enchentes nas cidades e outros acts of God.

Governos que se preocupam com estas questões são governos democráticos, inimigos da populismo, da demagogia, do paternalismo, da impunidades, das injustiças sociais. O país tem uma máquina burocrática de alto nível, usando os mais recentes avanços tecnológicos da informática e, por outro lado, está na Idade Média ou até em época mais remota no que diz respeito ao ataque frontal aos males diversos que nos afligem assustadoramente, como a violência – e a tragédia de Santa Maria foi um ato de violência sem dúvida alguma. Pratica-se a violência sempre que se fere a incolumidade das pessoas, sempre que deixamos de tomar providências que assegurarão o direito à vida, sempre que nos omitimos quanto às nossas atribuições em cargos de comando nos diverso setores públicos.

Sabemos que nem tudo pode ser evitado no campo dos acidentes ou desastres. No entanto, se um governo se pauta pela seriedade de sua administração, se escolhe bem seus secretários e todo a sua equipe, seguramente, nos três níveis, federal, estadual e municipal, há de realizar um trabalho com transparência, atendendo tão-somente ao bem-estar da sociedade. Não é isso que vemos nos Brasil em muitos setores do funcionamento da máquina do Estado.

Não é só decretando luto oficial que se há de resgatar os direitos dos cidadãos, os direitos humanos, os direitos individuais e coletivos. O que está se fazendo agora, no que tange à segurança dos lugaresde diversão, ou assemelhados, em muitas partes do país é válido, porém deixará de sê-lo se isto se transformar em fogo de palha, em ações paliativas para inglês ver.

O que desejamos da parte do setores públicos são ações efetivas, duradouras e permanentes do item “prevenção” contra acidentes de todos os níveis e proporções, quer da natureza, quer provocados pela má conduta dos homens, empresários, proprietários, construtores, síndicos, enfim, por todos aqueles sob cuja responsabilidade vão recair as penalidades da Lei caso não cumpram com os seus deveres e obrigações, principalmente se envolvem crimes de natureza vária contra a vida.

Isso vale também para os inúmeros segmentos da vida cotidiana: motoristas, pessoal de setores de manutenção, de fiscalização, de vigilância, da defesa civil etc. . Ninguém que ocupe uma função da qual depende a integridade física das pessoas pode se eximir do rigoroso cumprimento de suas obrigações, dos regulamentos legais.

A vida é o bem maior e em defesa dela devemos unir os sentimentos de coletividade, humanidade e respeito. Que a tragédia de Santa Maria seja o símbolo mais alto do grito nacional contra todos os que transgridem o espírito da Lei e de sua aplicação. A verdadeira modernização do Estado brasileiro só virá quando os males aqui levantados, em meio à dor dos jovens mortos em Santa Maria, forem erradicados de nossos costumes erroneamente por décadas enraizados sob a proteção infame da impunidade.

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