sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Luiz Filho de Oliveira: "Envite aos vates assinalados a jogar o chiste abaixo assinado(2)



Cunha e Silva Filho



O poema “Envite aos vates assinalados a jogar o chiste abaixo assinado”, o segundo poema do livro Das bocadas infernéticas, já embute no próprio título longo (Rabelais já o fazia no Gargântua, Jorge Amado, em algumas obras) uma alusão a uma ação em tom burlesco, brincalhão, humorístico, de divertissement, com um objetivo de, através do leitor ou receptor, o eu poético fazer este último compartilhar de uma espécie de “jogo” dialógico informal e, repito, em clima de ludismo. Este é, por assim dizer, o “pacto de leitura” poética estabelecido entre o eu poético e o leitor ou receptor.Convém notar o paratexto do título combinando lexemas que de de início imprimem o tom sarcástico propositadamente anacrônico – “envite”, “vate”, “chiste” – os quais antecipam, assim , o genro do texto que se vai ler.

No entanto, se percebe que, enquanto o eu poético se propõe hipoteticamente a dirigir seu “convite” aos autores, poetas, com exceção de Veríssimo, ou seja, o escritor contemporâneo, o cronista Luis Fernando Veríssimo, o citado “envite”, ou convite, não passa de um recurso retórico, uma vez que o eu poético na realidade se volta diretamente ao leitor, empregando este termo desconsiderando a multiplicidade semântica que teoricamente o permeia no domínio da Teoria Literária.

Repare-se que o primeiro verso do poema tem seu verbo no imperativo, i.e., recorre à função apelativa ou conativa da classificação jakobsoniana. Além disso, cada estrofe, composta de tercetos, em número de 12, seguida cada uma de um refrão inusitado e que provavelmente escandalize os leitores com pruridos moralistas, já que ainda os há dessa natureza, se concatena no discurso poético como uma interrogação-exclamação, o que revigora a ideia de efeito meramente retórico propriamente dito do “convite”, consoante se pode depreender de sua natureza comunicativa. O mencionado refrão ainda mais intensifica o efeito de exasperar aquele leitor desautomatizando-o de hábitos da linguagem poética bem comportada e de vocabulário da linguagem dita polida. O rebaixamento fica aqui no plano da enunciação, não da estrutura do código poético, não do resultado, do produto, que é o poema em si literariamente concretizado.

Por outro lado, o refrão “Eitaporra!” é uma expressão aglutinando a interjeição “eita!”, que, segundo o Aurélio[1] , exprime “alegria, incitamento, surpresa, espanto” com a palavra chula “porra” que, além de remeter à ideia de membro sexual masculino, ao sentido de “esperma”, ainda denota sentidos de “enfado, impaciência, desagrado” etc. Este vocábulo eufemiza-se através da forma apocopada “pô!”, segundo ainda ensina o Aurélio. Por conseguinte, o refrão “eitaporra” contamina qualquer resquício de elevação e sacralização semântica do cânone literário.

Vê-se, então, que a função da sátira é tornar o que poderia ser solene em grotesco, carnavalizado, empregando este último termo de empréstimo a Mikhail Bakhtin (1895-1975) que o usou na sua “Teoria da carnavalização”no livro Problemas da obra de Dostoiévski[2]. No já referido “pacto de leitura” poética, o poema mergulha no seu próprio universo às avessas, sem se importar com os aspetos moralistas ou éticos que possam suscitar na mente do leitor ou receptor.

Invocando para o bojo de seu centro temático feito de erotismo, luxúria e desrepressão comportamental passíveis de ferir susceptibilidades no espírito de alguns leitores, à semelhança de um Oswald de Andrade com propostas poéticas para épater le burgeois,” Luiz Filho de Oliveira, ao longo do poema, vai desfilando nomes consagrados da Antiguidade Latina como o poeta Horácio, famoso pelas suas odes e, por sua vez, poeta satírico, praticante de uma das divisões da sátira em número de três: a horaciana, que leva o nome do poeta, de teor crítico ameno; a sátira juvenaliana, de caráter ferino e a sátira menipeia, também chamada de sátira varroniana ou ainda denominada anatomia, um tipo de sátira mista, composta em verso com prosa e tratando de um mesmo tópico. Nela havia lugar para todas as formas literárias, podendo incluir diálogos, digressões, registros etc. O termo menipeia vem de Menipus, um filósofo cínico grego do século III antes da era cristã..[3] De acordo com Massaud Moisés, a sátira deve sua origem aos latinos. Quintiliano, retórico latino (37-100?),  no Instiutio Oratoriae X, 1, 93, já declarava: “A sátira surgiu de nós.” [4]

Na citação de autores no poema surge o nome de Dante Alighieri, o portentoso poeta da Divina Comédia, do período Pré-Renascimento italiano e, dando um salto geográfico-literário, Luiz Filho de Oliveira traz ao interior do poema o debochado e satírico Gregório de Matos, figura literária central no livro, e o maior poeta do barroco brasileiro. No poema, Tomás Antônio Gonzaga representa o Arcadismo e sua presença indiretamente está associada à dimensão satírica, por ser ele considerado o autor das Cartas Chilenas. São ainda mencionados do Romantismo os autores Bernardo Guimarães, não como ficcionista, mas na sua vertente menos conhecida, a satírica, seguido de outro, o poeta e abolicionista Luiz Gama, também na sua vertente satírica. À altura do Pré-Modernismo, no poema comparece o engenhoso poeta parodista Juó Bananère, cujo nome verdadeiro é Alexandre Marcondes Machado, autor da Divina Increnca. No modernismo, desfila no poema a figura irreverente e demolidora de Oswald de Andrade. No Brasil, contemporâneo, no poema surgem o também irreverente Millôr Fernandes, falecido no ano passado, o cronista Luis Fernando Veríssimo e o poeta marginal Chacal. Fecha o círculo dos autores homenageados na obra Das bocadas infernéticas. Segundo me declarou o próprio Luiz Filho, este grupo de autores elencados no poema exerceram alguma influência na sua poesia e, ademais, são alguns autores de sua predileção.O conjunto de autores no livro de Luiz Filho prefigura um recorte bastante amplo e de boa e ótima qualidade literária.

Tem-se, desse modo, no poema um conjunto orgânico de poetas cmm propostas intencionalmente crítico-satírico-humorístico que bem merecem, como ocorre na prosa de ficção, formar uma linhagem ou tendência da poesia satírica brasileira, bastante significativa, porém bem pouco conhecida do leitor comum e até mesmo de nível superior.

Acentuei linhas atrás que o poema se inicia por uma interrogação-exclamação, recurso empregado em todos os tercetos, mas este aspecto visual e aparentemente insignificante, exige um olhar interpretativo.mais profundo Ao lançar a última pergunta com um adicional sentido de surpresa, dá-se uma variação da função conativa, já que não há mais aqui um destinatário direto e inconfundível: o leitor em si, mas um apelo do eu poético com talvez o objetivo de conseguir a chancela ou aprovação do “Poeta,” o qual, no caso, seria Gregório de Matos, a figura mais proeminente da sátira poética brasileira. A condição metapoética do 12º terceto, define bem esse papel relevante de liderança e de formação de uma linhagem desempenhado pelo grande satírico do Barroco no percurso dos poetas satíricos na historiografia literária brasileira. A interrogação-exclamação, finalizando o último terceto, igualmente desentranha, com relação às figuras selecionadas, uma dúvida, uma indeterminação no que tange a uma resposta da parte do “Poeta.”

O elemento lexical nuclear gira em torno da lubricidade no tratamento de uma composição poético-satírica. Ainda mais, no lexema que desponta no último verso, “forras”, depreende-se a acepção de natureza ideológico-linguística, que é “libertação, ou seja, liberdade de linguagem e, por tabela, de comportamentos e atitudes do ponto de vista social, o que me leva a deduzir ser este signo, a liberdade, um dos eixos basilares do poema graças à sua autonomia formal insubmissa a normas morais pré-estabelecidas, especialmente se gastas e anacrônicas em termos de livre criação artística.

Constituído de verso rimados misturados e heterométricos, o poema não deixa nem por isso de, no conjunto das estrofes, propiciar uma certa melodia ou ritmo. Não atinei, contudo, por que razão houve esta heterodoxia rimática e métrica, sendo o poema um tributo principalmente ao “Boca do Inferno”?

Penetrando, agora, na estrutura interna do poema, estrofe por estrofe, tomo os dois exemplos dos poetas Horácio e Dante. O que o primeiro terceto descreve de forma hipotética seria a possibilidade de o poeta Horácio degradar-se no ambiente da cidade de Gomorra, uma das cidades, junto com a cidade de Sodoma - e o Velho Testamento o confirma -, castigadas por Deus sendo destruídas pelo fogo vindo dos Céus em virtude dos excessos de devassidão e maldades de seus habitantes. Ambas as cidades ficavam onde hoje se encontra o Mar Morto. Esta possibilidade - cumpre frisar - só existe no domínio do lúdico, do satírico, quer dizer, a exemplo dos demais tercetos, no ambiente da palavra aplicada ao propósito de dessolenizar o canônico.(Continua).

NOTAS:
[1] Novo dicionário da língua portuguesa. 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977,.p.501.


[2] BAKHTIN, Mikhail. Problemas da obra de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

[3] GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. 2nd. Edition. Longman York Press, 1994, p. 255-257.

[4  ]MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 469-471.






Um comentário:

  1. Muito bom, meu caro Cunha e Silva Filho. Esse poema é, sim, uma homenagem à poesia satírica brasileira. Com esse rol de poetas maravilhosos (e por que Veríssimo não seria considerado um "poeta"?), sugiro um giro por essa vertente "maldita" da poesia, representada, no poema, por esses autores que admiro e centrada na figura do Boca do Inferno; por isso, o título do livro: "Das Bocadas Infernéticas". Saudações.

    ResponderExcluir