sexta-feira, 30 de março de 2012

O Brasil perde mais um grande talento



Cunha e Silva Filho


Meu filho Francisco Neto, que mora no Paraná, toca o telefone e me comunica que Millôr Fernandes faleceu hoje. Não há coração brasileiro que aguente tanta notícia de desfalques de parte da vida intelectual brasileira. em tão estreito intervalo de tempo. Há dias foi Chico Anysio. Quem é que suporta tanta emoção, tanto sentimento de lamentação, tanta pena de perdas inestimáveis de nossos valores artísticos.

Estava, em Curitiba, na casa de Roza de Oliveira, poeta e trovadora de grande expressão, nascida no estado do Rio de Janeiro, mas, desde muito pequena, radicada no Paraná. Rosa é declamadora de talento. Tem memória portentosa e, conversa vai, conversa vem, falando de escritores de sua preferência, entre outras coisas me falou que só declamava aquilo que a emocionava mesmo. Então, lhe pedi que me declamasse um poema. Adivinhem qual foi: “Poesia matemática”, de Millôr Fernandes. O leitor não imagina como foi comovente a declamação feita sem vacilações e em tom de voz que me parecia estar ouvindo uma bela canção de amor.

Aquela história de dois apaixonados, o Quociente e a Incógnita(a Hipotenusa) sem fim feliz, tornou-se emblemática na produção poética do autor, principalmente se levarmos em conta a constelação de léxicos de que se serve o poeta, mobilizando o campo semântico da geometria. É no congraçamento semântico que o poema se realiza de maneira a atender à sua lógica interna, onde o tema, o amor, se tece pelo lado do humor, do humor fino, a princípio divertido e, ao final, corrosivo, ácido, tendo como chave de ouro uma lição de pessimismo existencial que não se limita apenas a desconstruir o sentimento amoroso à romântica, como sobretudo invade os meandros da crítica social, flagrada nos seus aspectos mais caóticos, que são os do plano moral, dos desvios da ética amorosa para os descalabros da “relatividade” dos agora desfibrados laços do amor em sociedade. Esse sentido de aviltamento da moralidade para o lado do que a sociedade em geral vem acentuadamente se inclinando já era sintomático desde a época em que o poema foi escrito como parte do livro Tempo e contratempo (Rio de Janeiro: Editora O Cruzeiro, 1954), para o qual Millôr usou o pseudônimo de Vão Gogo. Diferentes pseudônimos ele usaria na publicação de outras obras ao longo da sua trajetória.
O citado poema, nas décadas de setenta e oitenta, era presença quase obrigatória nos livros didáticos de Português. Justamente pelo que oferecia de divertido na sua construção literária, como pelo tema que levava ao debate em torno dele devido à sua original composição,sobretudo considerando o divertido e inusitado jogo semântico. Levava ao riso e também à reflexão. Não era um poema complicado, mas era um poema extremamente bem estruturado e que elevava por certo o interesse e a curiosidade de jovens adolescentes. Basta ver, agora, se pesquisarmos na internet, a copiosidade de referências a esse texto de Millôr.
Uma vez me chateei com uma crítica de Millôr a Agripino Grieco. Pensando bem agora, vejo o quanto me equivoquei com o que dissera o humorista sobre o crítico que no seu impressionismo tanta força tinha também de veia satírica e humorística.
Millôr Fernandes, visto na sua totalidade artística, tanto quanto na sua produção jornalística, ao lado de outros poucos corajosos escritores que enfrentaram os anos da Ditadura no país, será um escritor que só com o tempo – e este tempo virá – será devidamente valorizado e conhecido pelas gerações mais jovens. Seu nome está ligado a importantes publicações brasileiras onde se praticava um jornalismo de alta qualidade tanto no aprofundamento dos temas quanto no valor da escrita. Publicações como O Cruzeiro, Cigarra, Veja, O Pasquim, entre muitas outras, foram trincheiras formidáveis para expressarem as mazelas e e os descalabros da realidade social e política e cultural brasileira. E não estou falando ainda do tradutor autodidata que ele foi, do crítico literário, do poeta, do dramaturgo de alto nível técnico, do desenhista, do humorista, do fabulista, do criador de frases que se tornaram um verdadeiro repositório de máximas inteligentes que dificilmente serão apagadas da memória dos seus leitores.
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Sua sagacidade como analista de texto de obras que lia com a razão em primeiro lugar e com a emoção em segundo lugar, fez sucesso com as análises hilárias e inteligentes desancando estilística e estruturalmente o livro Brejal dos Guajas narrativa de José Sarney, segundo se pode constatar na obra Crítica da razão impura ou o primado da ignorância (L&PM, 2002). Nesta mesma obra Millôr critica o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso.
Como referência permanente de sua contribuição ao teatro brasileiro, “... na linha do humorismo sofisticado de Silveira Sampaio...”(Cf.: STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Trad. de Pérola de Carvalho e Alice Kyoko. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 688), Millôr Fernandes escreveu, entre outros, Um elefante no caos (1955) e Vidigal, memórias de um sargento de milícias (1981).
Esta voz agora que, agora, se cala vai deixar um Brasil ainda mais órfão de vigor crítico, de pensador social, desses escritores de raça que tanto me fascinam, sobretudo porque nunca ficaram surdos e acachapados diante da ignomínia, da injustiça e da prepotência dos poderosos neste país ainda de tantas agruras sociais, de tantos absurdos cometidos contra um povo ainda tão sofrido, tão maltratado na educação, na segurança, na violência, na saúde e nas suas práticas políticas

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