quinta-feira, 19 de maio de 2011

Na onda dos preconceitos

Cunha e Silva Filho


Se, em nosso país, qualquer situação conflituosa entre maiorias e minorias envolvendo opiniões pessoais sobre algum tema, se transformar em preconceito, a Justiça do país estará sempre ocupada e indisponível a decidir sobre outras questões relevantes.
Ontem, dia 13, o Jornal Nacional da TV Globo exibiu uma rápida reportagem sobre a publicação de um livro aprovado pelo MEC, através do Programa Nacional de Livro Didático. A obra tem por título Por uma vida melhor e faz parte da coleção “Viver e aprender.”
Do livro aproximadamente foram distribuídos pelo MEC 485 mil exemplares a jovens e adultos. Escrito em co-autoria, o livro se destina a ensinar a língua portuguesa tendo por princípio metodológico o “uso popular” do idioma que, segundo declaração de uma das autoras, Heloisa Ramos, deve ser aprendido com flexibilidade e sem as amarras da gramática normativa nos seus vários níveis: fonético, morfológico e sintático. Ou seja, o ensino-aprendizagem dessa disciplina acolheria como possibilidades normais e adequadas as construções consideradas solecismos ou outros vícios de linguagem desviantes da normatividade gramatical.
O tema, por ser controvertido, merece comentários judiciosos de quem é bom usuário da língua e dos profissionais especializados no campo da gramática, da linguística e da filologia, uma vez que se está lidando no caso com o mais importante meio de expressão comunicativa: a linguagem.
Minhas considerações neste artigo se fundamentam na reportagem que o jornal O Globo publicou na edição de 14 deste mês. A reportagem cita, para ilustrar, os seguintes exemplos que o livro inclui como construções que não devem ser consideradas incorretas pelos falantes da língua: “Posso falar os livro?”; 2) “Nós pega o peixe”; 3) Os menino pega o peixe.” Segundo a mencionada autora, tais usos de construções na comunicação escrita/oral são perfeitamente aceitáveis e não podem ser objeto de censura por parte de pessoas que, na escrita e na oralidade, obedecem aos usos normativos da língua com alguma tolerância a certas formas de enunciados que a própria gramática normativa já vem aceitando.
Entretanto, há que se estabelecer limites possíveis, como no caso de erro de concordância verbal ou de uso correto de flexões de números do substantivo e do seu adjetivo modificador, ou de silabadas. Ou seja, erros que envolvem as três partes principais da gramática.. Isso não configura de modo algum que professores pertencentes a classe social mais favorecida, na maioria dos casos, estejam praticando elitismo ou impondo autoritariamente o uso da norma culta. Para a autora, não aceitar essa realidade, i.e., o uso do nível popular da língua, caracterizaria intencional atitude de “preconceito lingüístico.”
Um livro didático que se utilize dessa abordagem de ensino do português como estratégia dominante pode ser uma novidade, mas a questão polêmica aí implícita já vem de longa data. Remonta mesmo à introdução da ciência linguística no país, com Mattoso Câmara Jr. e seus Princípios de línguística geral, cuja terceira edição data de 1959, antecipando-se mesmo, no âmbito da língua portuguesa, ao linguista português Herculano de Carvalho, que só publicou Teoria da linguagem,* em dois tomos, na década de sessenta.
Veio, em seguida, o estruturalismo, no final da década de sessenta. Mdificando velhos hábitos nos campos, entre outros, da antropologia, da linguagem, da teoria e crítica literária, não foi, contudo, bem recebido pelos estudantes da minha geração devido às profundas alterações ocorridas nos esquemas de análises linguísticas e literárias que mais pareciam, para nós jovens, estruturas de enunciados atomizadas em formas de representação ou esquema fenogramático ( ou de árvores)) e de parentetização de estruturas frasais. Logo vieram os estudos de Chomski, com as suas basilares noções de estrutura superficial e estrutura profunda e as concepções norteadores da gramática gerativo-transformacional.
Em suma, era um período de fermentação da ciência linguística, da semiologia, da semiótica, do estruturalismo, resultando este último campo de estudos, dadas as suas características en passant apontadas, em certo enfado na área de Letras. Esse excesso de algebrismo de aplicação aos estudos linguísticos e mesmo literários, muito presos a um cientificismo de natureza lógico-matemática foi, aos poucos, sendo relegado a novos enfoques nos estudos da linguagem, na teoria literária e na crítica literária com abordagens menos submetidas ao tecnicismo áspero e desumanizante, Não se pode, todavia, reconhecer que o estruturalismo, competentemente aplicado a várias áreas do conhecimento, deixou contribuições valiosas que as ciências não podem negligenciar.
Não se pode tampouco negar que o campo da linguística veio arejar profundamente os arraigados conceitos ortodoxos da gramática normativa. Veio, pois, pôr em xeque princípios cristalizados do que seja “certo” e “errado” ainda subordinados a normas completamente ultrapassadas como foram aquelas escritas pelo velho gramático e filólogo luso Cândido de Figueiredo com obras como O que se não deve escrever, Falar e escrever, Lições práticas de língua portuguesa. Gramáticos como ele tiveram vários seguidores no país até algum tempo atrás. Eu próprio fui leitor de muitos deles quando adolescente.
Esse arejamento a que acima me referi permitiu que os professores formados sob moderna orientação linguística ficassem mais tolerantes e abertos com interpenetrações do discurso oral e da escrita, até mesmo nos textos literários.
O que ocorreu efetivamente foi uma maior ênfase dada à comunicação oral diante dos crescentes avanços da teoria da informação e de novas mídias. Com a popularização da televisão, o indivíduo recebeu maior carga de informação através da fala do que da escrita. Ouvimos mais do que escrevemos.
Em vez da oposição rígida entre o “certo” e o “errado”, desenvolveram-se investigações vigorosas e acuradas nos estudos da língua, da linguagem, do discurso, do estilo, das quais resultaram novos conceitos, seja no ramo da linguística aplicada, seja na sociolingüística*. Nesta última, aprofundaram-se os usos da língua através das pesquisas dos níveis da fala, i.e., de correspondências entre estratos sociais e discurso oral. Surgiram, então, conceitos de registros, de “variação e conservação linguística”, de noção de correção”, de idioleto, de falares regionais e de uma escala considerável de situações e contextos socioculturais e suas contrapartidas linguísticas.
As modificações de atitudes dos linguistas mais abertos ao aspecto comunicativo da língua embaralhou o uso normativo, tido pelos gramáticos como modelo do uso correto das classes culturalmente mais prestigiadas.
Se um velho gramático inglês, Brian Kelly já assinalava: “Se as regras das gramáticas diferem do uso das pessoas cultas (grifo meu), então as gramáticas devem mudar, pois a gramática se fez em consonância com a língua e não o contrário,” a questão se torna, dessa forma, aparentemente contraditória, visto que os desvios gramaticais poderiam ser agasalhados pela normatividade. Na verdade, por vezes, o são, mas não de forma generalizada, e caótica. Há que haver critério, aceitação, porém não dogmatismo.
Entretanto, o que o gramático inglês pretendia afirmar era que a gramática não deveria se comportar dogmaticamente a ponto de recusar as novas contribuições do uso coloquial que, aos poucos, vinham conquistando, mesmo entre pessoas letradas, seu espaço no domínio da oralidade e da escrita formal, fiel seguidora da disciplina gramatical. Servem de exemplos construções com o verbo “ter ” (uso informal) de preferência a “haver” (norma culta), ou a mistura de pronomes de tratamento dirigido ao receptor, comum no português do Brasil, ou até mais radicalmente coloquial entre pessoas com boa cultura, o uso do pronome “tu” seguido de verbo sem a desinência número-pessoal: “Tu vai me dizer agora mesmo”, é comum se ouvir entre pessoas que sabem a forma gramatical culta correspondente.
A meu ver, as autoras da obra em questão, posto que conscientes das chamadas variações linguisticas, tão conhecidas dos estudiosos do português – variações diatópicas, variações diastráticas e variações diafásicas, não levaram em conta esse conjunto de diversidades e, assim, erroneamente ou por razões ideológicas, super-dimensionaram o nível da linguístico popular.
De certo que a escola deve ensejar ao aluno o acesso às outras variações da língua, coisa que numerosos livros didáticos já vêm fazendo há pelo menos três décadas.
Privilegiar apenas o uso popular oral ou escrito, seria obstar o progresso do aluno ao conhecimento integral dos diferentes usos linguísticos.
A raiz do defeito da obra, Por uma vida melhor, foi absolutizar, por assim dizer, o uso da língua sem prevenir o aluno da complexidade das variações da fala ou da escrita, inclusive esquecendo-se de uma circunstância ponderável: sem a percepção dos diferentes usos da língua, o aluno, mais tarde, será prejudicado na sua vida adulta e profissional, já que não lhe foi facultado saber que a norma culta (uma das variações diastráticas) é aquela que se deve dominar em situações de concursos públicos, vestibulares e testes de conhecimento da língua portuguesa ou no exercício de diversas funções.
“Preconceito linguístico” seria, sim, se o professor apenas internalizasse na mente do aluno o uso gramatical inadequado à disciplina gramatical, impedindo, na instituição escolar, que o educando tivesse acesso ao conhecimento da gramática normativa. Isso seria, não preconceito, mas democratização do domínio da língua nativa em igualdade de condições com as classes cultas da sociedade.
Para concluir, o conhecimento e a prática da norma culta, no falar e sobretudo no escrever, constituem um indispensável exercício de cidadania, de inclusão social. Qualquer impedimento neste sentido configuraria um real “preconceito linguístico” por parte das autoras.

Referências:

1. Jornal O Globo, sábado, 14/05/11, seção Pais, p. 9. Reportagem sob o título “MEC distribui livro que aceita erros de português.”
2. MATTOSO CÂMARA JR. Joaquim. Princípios de linguística geral. 4. ed Revista e aumentada. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1964.
3. CARVALHO, José G. Herculano de. Teoria da linguagem. Tomos I II. Coimbra: Atlântida Editora, 1973.
4. LOPES, Edward. Fundamentos da linguística contemporânea. São Paulo: Cultrix, 1976.
5. PRETI, Dino. Sociolinguística – os níveis da fala. 4 ed. reformulada. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982.
6. CUNHA, Celso/ LINDLEY CINTRA, Luís F. Nova gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
7. VVAAA. Estruturalismo, 15/16. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d.
8. GRAY, Martin. A dictionary of literaryy terms. Second edition. Logman York Press, 1994.
9. GOMES DE MATOS, Francisco. (Ed. by). Methodology and linguistics. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1970.
10. KELLY, Brian. An advanced English course for foreign students. Londo: Longmas, Green and Co., 1940, p. 352.

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