sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Saudade, tempo e memória

Ai do homem sem saudade!
Alceu Amoroso Lima, Meditação sobre o mundo interior


Para M. Paulo Nunes

Cunha e Silva Filho


Não concebo como intelectuais, escritores, supostamente indivíduos sensíveis aos sentimentos, emoções, possam dar pouca importância a assuntos conexionados à saudade, tempo e memória, fundamentais veios hoje largamente investigados nos estudos literários por pesquisadores acadêmicos ou não acadêmicos.
O tempo é um a categoria literária no qual estão embutidas a memória e a saudade. Se alguém, por deficiência de sensibilidade, não valoriza o passado do prisma memorialístico nem sobretudo a saudade, é porque não habituou os ouvidos às ressonâncias estéticas que só nos podem vir do que se fixou indelevelmente na memória. Por conseguinte, sempre que o escritor recaptura memórias imaginadas ou mesmo vividas, ele o faz, não para simplesmente denunciar os erros pretéritos, mas principalmente para tentar recapturar aquilo que, para algumas pessoas, está sepultado.
Os mais proeminentes memorialistas, quer nacionais, quer estrangeiros, não reconstroem o passado, através da escrita, só motivados a cotejá-lo com o presente, sempre uma duração de natureza temporal instável e fugidia. Ao contrário, o passado vale na medida em que recompõe o que está disperso abstratamente. A função do memorialista se reveste da maior importância e, muitas vezes, muito pode ajudar os historiadores que, na memória literária, vão encontrar subsídios relevantes a fim de preencherem gaps históricos muitas vezes mais habilidosamente narrados ou recriados pela imaginação criadora. Os romances históricos estão aí não só para deleite estético, mas como alternativas fecundas para um outra visada dos acontecimentos históricos.
O tema da saudade, sentimento de fundo tão visceralmente romântico, cujas raízes mais delicadas podemos remontar à literatura galega, o qual, a partir dessa origem, se espalhou admiravelmente por várias literaturas do Ocidente, com relevo sobretudo para as literaturas portuguesa, espanhola e brasileira, numa influência poderosa e recorrente até aos tempos atuais, dificilmente não se torna um dos mais prezados pela alma brasileira, dessa alma que, para Ronald de Carvalho (1893-1935) “nascia de três grandes melancolias, sendo uma delas a saudade portuguesa (Cf.CARVALHO, Ronald de . Estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A./MEC, p.71). O próprio termo “saudade” que, para os filólogos de procedência lusitana, não tem equivalência semântica rigorosa em outras línguas, constituindo para eles um exemplo de idiomatismo da língua portuguesa, encontrou entre nós um vasto campo temático a ser explorado, sobretudo a partir do introdutor do Romantismo brasileiro, o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882), com a obra inaugural desse estilo literário, Suspiros poéticos e saudades (1836) e, em especial, com as obras de Gonçalves Dias (1823-1864) e Casimiro de Abreu ( 1839-1860) O mesmo tema da saudade magistralmente foi retomado, na literatura brasileira, por do Da Costa e Silva (1885-1950), poeta piauiense da fase epigônica do Simbolismo, de resto, poeta que escrevia em estilos múltiplos com inegável abertura para as formas modernas, sendo ele mesmo o autor do mais belo soneto em língua portuguesa sobre a saudade..
Subestimar o tempo, a memória e a saudade como possibilidades para o desenvolvimento da produção literária brasileira constitui, a meu ver, um reducionismo empobrecedor. Se o Romantismo é um dos estilos literários mais fecundos da literatura Ocidental, e com um papel inestimável até nos estudos filológicos assim como em outros domínios do saber humano (vide o pequeno e notável estudo de Sílvio Elia, O Romantismo em face da filologia.: [Porto Alegre]: Instituto Estadual de Cultura, Secretaria de Educação e Cultura. Cadernos), o tema da saudade, por tabela, é um dos vetores mais sólidos desse estilo, não se podendo, pois, conceber – vale frisar - a ideia de minimizar um veio dessa magnitude só porque comparações com o estado das coisas do presente não foram solucionados por desídia e falta de visão da administração pública.
A motivação de temas e gêneros literários são construções pessoais, subjetivas, cujo espaço maior e intransferível é o das afetividades, da captação da realidade através da ressignificação, pela memória do adulto, de fragmentos, pedaços e retalhos da memória, pessoal ou histórica, transformada, na complexidade da representação simbólica da escrita literária, em espécime literária de um dado gênero, que pode ser a crônica em suas várias possibilidades temáticas, o memorialismo, o romance histórico, o romance tout court, a novela, o conto, a poesia, a peça teatral.
O compromisso do escritor é, antes de tudo, com a linguagem literária e suas implicações diversas, não se excluindo o dado social que, por sua vez, é índice inequívoco de que, ao expor aspectos memorialísticos do ser do escritor, não está sonegando os desacertos do presente e seu desconforto com a destruição do que era bom do passado e podia ser preservado se não fosse a ação deletéria do homem impulsionada pela avidez econômica sem sustentabilidade. Daí sua procura do que foi tragado pelo tempo, seja do ponto de vista das relações humanas, seja do que se transformou em ruínas no presente: construções, manifestações culturais, hábitos, sociabilidades etc. As emoções agradáveis do passado não podem responder pelo desatinos da insensibilidade do presente.

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