segunda-feira, 5 de abril de 2010

"Viver a vida": a importância do olhar


Cunha e Silva Filho



Não nutro preconceito contra novelas de televisão. Muitas delas são excelentes e a elas novos recursos técnicos estão sempre se incorporando. Já se consolidou como um novo gênero narrativo eletrônico no campo ficcional. No país, foi o crítico e ensaísta Afrânio Coutinho (1911-2000) quem, em artigo no extinto jornal Última Hora, a considerou um novo gênero literário (Cf. SOUSA DANTAS, Jose Maria de. Didática da literatura. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1982. Ver capítulo 12, “A Telenovela”, p. 181-183). Coutinho no artigo lembrava que a novela de TV substituía, no século 20, o antigo folhetim, onde, na França, no século 19, foi cultivado por vários escritores, sendo um dos principais Eugène Sue (1804-1857) com Os Mistérios de Paris, aliás muito traduzido.
Esse gênero, no Brasil, também encontrou alguns seguidores, como Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, entre outros.Coutinho, ainda no mencionado artigo, teorizava que o novo gênero reunia elementos do folhetim, que é literatura, teatro e cinema. O crítico previa que a telenovela iria alcançar um nível cada vez melhor, tanto no texto quanto na dramaturgia, inclusive assinalava que sua prática entre nós já conseguira resultados positivos com a “criação de verdadeira escola dramática”, ensejando o aprimoramento do nível de talentosos artistas entre nós.Finalmente, Coutinho antecipava que o novo gênero iria receber forte influência da televisão sobre as “técnicas narrativas” assim como se dera com o folhetim e o cinema.
Pessoas há ainda que pouca ou nenhuma relevância dão às novelas de televisão, sobretudo no meio acadêmico.Outras a veem apenas como uma forma de entretenimento de massa, como uma forma alienada atingindo milhões de telespectadores. Para mim, isso não passa de preconceito de ordem elitista, de highbrowism tupiniquim.
Qualquer indivíduo que lida com a pesquisa cultural não pode subestimar o avanço desse gênero de entretenimento que chegou para ficar. Não nego que há níveis ou graus diferentes de valorização dessa aliciante forma de produzir emoção, prazer e estesia. Se a novela televisiva atende ao gosto popular, ela abrange outros níveis de leitura, não se descartando o estético, o informativo, o do debate de temas propostos pelo próprio enredo, ao qual se adicionam componentes extranarrativos, como o testemunho vivo de pessoas complementando o caleidoscópio de aspectos da realidade empírica com a fantasia ou imaginação.
Costuma-se ainda criticar nas telenovelas brasileiras alguns estereótipos, lugares comuns, maniqueísmos, e repetitiva formatação de enredo, mesmice dos conflitos apresentados, influência do público segundo a direção da fabulação através de enquetes junto ao telespectador. Esse aspecto redundante ou entrópico ainda glamouriza espaços socais elevados, a vida dos ricos e famosos a que autores dão maior peso na novela, sabendo de antemão que isso se ajusta muito bem ao gosto médio ou baixo do repertório cultural do telespectador. Outras vezes, faz contraponto com espaços rebaixados da pirâmide social, mas, como diria um crítico e ensaísta Fábio Lucas ( LUCAS, Fábio. O caráter social da ficção do Brasil São Paulo: Ática, 1985, Série Princípios) sem nunca “problematizar” as questões envolvidas nos enredos. Dessa forma, abortam pela raiz os chamados conflitos de classes e a sociedade permanece firme nas suas diferenças perspectivas e nas suas clivagens sociais.
Afastando, no entanto, essas deficiências do gênero das telenovelas, pode-se também aproveitar certas dimensões subliminarmente introjetadas pelos escritores desse gênero ou mesmo pelos escritores do gênero ficcional ou do teatro, que passaram pela experiência de roteirizar textos para a televisão, como Dias Gomes, Aguinaldo Silva, entre outros.
Já é tempo de se escrever um capítulo em nossas histórias literárias que se ocupe de fornecer uma visão panorâmica das telenovelas. Temos suficiente know-how e um número apreciável de escritores devotados a escrever histórias televisivas, sem esquecermos de que contamos com um número respeitável de bons atores e atrizes quase trabalhando só em novelas de TV. Além dessa contribuição, pode-se lembrar o grande número de obras-primas da ficção brasileira adaptadas para a televisão, algumas vezes, com invulgar talento por parte de experimentados roteiristas.
Na história da telenovela brasileira, há um nome esquecido que, durante um bom período, militou na crítica de televisão. Sendo um bom cronista, foi ainda um melhor crítico de novela televisiva. Estou falando de Artur da Távola (1936-2008)), pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros, cuja carreira de escritor ficou, a meu ver, prejudicada ou torcida quando do seu ingresso na política nacional. Perdemos um bom crítico. Nem sei se seus artigos publicado em O Globo foram reunidos em livros.
Visto ser “o olhar’ o tema principal deste artigo, aproveito para desenvolvê-lo tendo por objeto de análise a novela “Viver a vida”. De antemão previno o leitor de que não me interessam na novela a miudeza, as filigranas de nomes e personagens. Nela me intrigam, no entanto, aspectos que, talvez, não constituam o centro do fiel telespectador em sua maior ou menor capacidade de entendimento de novela.
Dentre outros aspectos, há um em particular - para inspirar-me num conhecido título de um livro de Gilberto Mendonça Teles - que eu chamaria de “estilística do olhar”, recurso ampla e reiteradamente utilizado por Manoel Carlos, autor da novela assistido por colaboradores.
Assim como no cinema, os closes nos permitem ver com maior argúcia a expressão fisionômica da personagem, que, por sua vez, muito revela do seu mundo interior, na novela “Viver a vida” a câmera magistralmente registra a visão do “olhar” da personagem de maneira tão encantadora que a emoção trocada entre dois personagens em cena se torna artisticamente verdadeira e nos abre diversas possibilidades de compreensão dos papéis do atores e atrizes. Pode-se mesmo aventar a hipótese de ser o “olhar” na história uma de suas dimensões de maior carga emotiva.
Não significa, todavia, que o “olhar’ seja um caso isolado de alguns poucos personagens. A contrário, ele se estende a vários atores e atrizes coadjuvantes. Ao longo dos diálogos competentemente urdidos, a estratégia do “olhar’ confirma, pela sua intensidade e verticalidade, ser um dado permanente e por isso reafirma essa “estilística” que perpassa a expressão visual-gestual das personagens.
Por outro lado, vejo a “estilística do olhar’ como um recurso muito associado ao sentimento do amor ou de um possível e latente despertar desse sentimento cedo ou tarde ao longo da história. Vejo mesmo, na focalização da câmera, que esse recurso torna-se, por sua própria natureza, uma expressiva notação da fisionomia da personagem que, por ser reiterativa nessa narrativa televisiva, propicia ao analista uma maior abrangência perceptiva. Quer dizer, esse modo de ver a personagem de maneira sutil se realiza num tempo curto, mas de grande efeito dramático, o qual mais se comunica pelo silêncio acompanhando o “olhar.” Perde-se a oralidade do diálogo, mas se ganha admiravelmente em sua profundidade, em sua verticalidade, repito.
Para completar essa fórmula de comunicação das emoções entre as personagens vivendo uma grande experiência amorosa permanente ou continuada, é inegável que da parte dos telespectadores exista uma fruição que se colocaria no mesmo circuito comunicativo, como que instaurando um tripé de cumplicidade pelo lado da emoção e da identificação sublimadora entre os sentimentos da representação dramática e da própria experiência sentimental do telespectador. Disso são exemplos algumas trocas de olhares entre os personagens gêmeos, Miguel e Jorge, e as figuras femininas com quem formam pares amorosos, O mesmo valeria para os personagem Bruno, Marcos e outros.
Observar detidamente esta “estilística do olhar’ será uma das maneiras fecundas de apreensão da visão do autor sobre o “olhar” e sua indispensável estratégia de dar foros de autenticidade e verossimilhança, e - não se esqueça -, essa estratégia é que reponde por um dos valores estéticos da novela. Em outras palavras, o “olhar” na novela, pelo silêncio e pela suspensão momentânea da fala, é chave valiosa para um mergulho denso de emoções de profunda tentativa de comunicar-se com o ente amado, não o fazendo com palavras explícitas, mas escondendo afirmações e anseios semiotizados pela “estilística do olhar” de quem queria abrir seu coração e afirmar sua subjetividade amorosa. A emoção não verbalizada se frustra em parte, mas no seu interior permanece em ebulição. Tal elemento, na estrutura da novela, se me afigura de capital importância.

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