sexta-feira, 30 de abril de 2010

Línguas para todos os fins

Línguas para todos os fins

Cunha e Silva Filho




Com o desenvolvimento do estudo da linguística - ciência constituída nos fins do século 19 - , sobretudo nos últimos quase cinquenta anos, a aprendizagem das línguas foi enriquecida enormemente e em várias direções insuspeitadas no século passado ou em séculos anteriores. Foi uma verdadeira revolução nos fundamentos do ensino-aprendizagem até desaguar nos dias que correm em que o aprendizado se beneficiou de mil maneiras com o surgimento da Internet.
Não diria que as contribuições dos velhos métodos foram de todo jogadas no lixo. Longe disso, as abordagens, ou para usar um termo tão ao gosto dos estudiosos, os approaches conquistados com os avanços linguísticos, alcançaram as alturas de hoje graças aos diversos métodos do passado e mesmo a ausência de métodos. Prevalece hoje em dia o método comunicativo, que alia o componente do discurso oral prevalecendo sobre o gramatical, mas sem desprezar este. Um outro método seria o chamado ensino de idiomas para determinados fins, priorizando o campo semântico de um dado conhecimento humano e se aproveitando do próprio background cultural do estudante.
Desde a adolescência, o interesse pelos estudos de línguas modernas e mesmo mortas sempre foi uma grande preocupação minha, desde o dia em que me descobri lendo no original inglês sem recorrer muito ao dicionário pelo qual tenho grande admiração. Costumava seguir aquela advertência de Théophile Gautier (1811-1872) que aconselhava aos jovens a leitura e consulta constantes nos dicionários: “Jeunes gens, lisez les dictionaires” Assim o fiz e ainda o faço não com tanta frequência da leitura pela leitura, mas para consultas de traduções ou de leituras no original. Tive a sorte de ter um pai que conhecia bem francês, latim, italiano e um pouco de inglês. Na minha casa, em Teresina, na biblioteca dele, ficava horas a fio remexendo no “pai dos inteligentes”, como preferia o professor e tradutor americano George Reed, em vez do nosso, para ele, inexplicável e injusto conceito “pai dos burros”.
O estudo de línguas demanda constante dedicação e paciência. Não se aprende uma língua por inteiro. Há diversos níveis de aprendizagem e vários campos de aplicação e uso de idiomas: a) o uso da conversação nos seus, pelo menos, três níveis (principiante, intermediário, adiantado) de compreensão ; o da leitura (também com seus três níveis de habilidade; o da tradução, campo fecundo e de alta complexidade, desdobrando-se em várias aplicações e objetivos, como tradução técnica, literária, científica, tradução ficcional, tradução de conferências, interpretação para usos prático-comerciais, tradução juramentada (para fins comerciais, jurídicos, diplomáticos), tradução poética; o da versão, este dos mais espinhosos exigindo completo domínio da língua nativa do tradutor e da língua-alvo. O campo da versão, nas suas aplicações, é semelhante ao da tradução, mas é ainda mais complicado do que esta última.
Há quem diga que traduzir, sobretudo obras literárias (ficção, poesia, peça teatral) é uma vocação. Pessoas há que entendem bem uma língua estrangeira, porém são incapazes de serem bons tradutores. A razão é simples: a tradução ou a versão exigem a mediação da sensibilidade criativa. Quando um linguísta como Mattoso Câmara (1904-1970) afirmou em aula - tenho orgulho de ter sido aluno dele - que tudo é possível de traduzir, não queria mais do que significar o seguinte: ao tradutor cabe encontrar o equivalente semântico entre um texto de uma língua para a outra. Este é o pulo do gato na atividade laboriosa da tradução. Sendo assim, a tradução é uma busca contínua e de alta responsabilidade intelectual. O seu mau uso pode causar até tragédias, como é a situação daqueles que trabalham em controle do tráfego aéreo, dos quais se exige , antes de tudo, um convivi íntimo com a habilidade oral de compreensão de uma idioma.
Há um fato digno de observação. Tradutores há que não falam nem escrevem com proficiência uma língua, entretanto, a traduzem e às vezes bem. Por exemplo, Mário Quintana (1906-1994) não falava bem francês, mas traduzia nesta língua. Acredito que existam muitos tradutores literários que estão nessa mesma situação que o poeta gaúcho.
Escritores há que leem bem no original algumas línguas , contudo não as falam fluentemente porque esta habilidade precisa de muita prática, de muito contato, em especial com os nativos dessas línguas ou que tenham tido vivência de, pelo menos, segundo afirmam especialistas, cinco anos, no país da língua que se deseja dominar.
O conceito do domínio profundo de uma idioma estrangeiro não se compreende assim de forma tão simplista. O domínio de uma língua pressupõe divisões de áreas de aplicação diversificada: engenharia, comércio, ciência, tecnologia, direito, medicina, letras, navegação, aviação, transporte, informática, enfim, todos os ramos da atividade humana. Por isso, deve-se ter cuidado em afirma que alguém detém o conhecimento completo e absoluto de uma língua.
Há muita falácia quando entramos no campo da discussão dos chamados poliglotas. Que eles existem é um fato. Que o cardeal italiano Mezzofanti (1774-1849), que falava 38 línguas fluentemente e sem sotaque!. ) existiu, existiu, assim como, entre outros poliglotas, Wilhelm Leibiniz (1646-1716), filólogo e matemático alemão abalizado em línguas, Erasmo Rask (1787-1832), professor dinamarquês de línguas orientais,William Jones (1746-1794), indianista inglês, pioneiro na Inglaterra dos estudos do sânscrito e que, além disso, conhecia hebraico, persa, árabe, chinês, alemão, italiano, português, espanhol e francês. Todavia, aquele domínio pleno da língua é algo quase inatingível. Já disse um professor de línguas que muitas vezes quinze ou vinte anos não é suficiente para dominar-se um idioma. É uma verdade. Uma língua só já dá grande trabalho de dominá-la com perfeição nas habilidades do falar, do entender, do escrever, do traduzir e do verter.
Uma certeza tenho: a pessoa que se der ao trabalho dignificante de cultivar o conhecimento de duas ou mais línguas, deve fazê-lo com o propósito de nunca esmorecer no contato diário com esses instrumentos preciosos da sua formação cultural. Jovens ou menos jovens, devem envidar esforços para aprenderem línguas e, se for profissional liberal, e desejar fazer mestrado e doutorado, ainda se torna mais indispensável, mesmo obrigatório, o domínio de idiomas modernos. Sem esse instrumental, é impossível galgar maiores posições em qualquer campo da atividade intelectual, da pesquisa e dos estudos em elevados níveis de complexidade.

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