sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O retrato na parede

O retrato na parede

­
Cunha e Silva Filho


O retrato estava ali, na parede, imutável, o mesmo que há uns poucos anos, tinham tirado numa dia feliz sem data agora. Quando, porém, olhava, havia sinal de que o sinal de que o reconhecia. Pelo menos, é o que suponho da cena presenciada aqueles poucos instantes em que ali fiquei E isso a deixava mais tranquila.Em torno daquela bela sala de biblioteca, com livros atrás da velha escrivaninha, livros com lombadas de diversos assuntos: literatura, direito, livros religiosos, história, filosofia, livros do autor , que ali, ao lado, na parede, continuava e continuaria imóvel. Nenhum pacto o modificaria. As feições dele não se desfigurariam como as do personagem Dorian Gray do célebre escritor Oscar Wilde.
Eu a encontrei, após ser anunciado por um parente, sentada, elegantemente vestida, de uma discreta elegância que ia dos pés à cabeça. Ela ali estava à minha frente, pois as estantes embutidas da biblioteca não mudaram de lugar, mas a escrivaninha foi invertida. Agora, ficava de frente para os livros, e não mais de costas para estes.
Cheguei, um tanto sem jeito e a cumprimentei. Ela, com um olhar distante, levantou a vista para mim e me cumprimentou, não com as palavras que esperamos de um cumprimento, mas assim:
- Olhe, ele está ali, apontou-me movendo a cabeça meio grisalha. Eu fiquei meio constrangido, sem saber o que dizer pra ela.
- Ah, sim, é ele.
Aquela mulher, uma bela mulher que conheci ainda bem jovem, na época, tinha uns quarenta e poucos anos, o que mais nela notei era sua sensualidade de andar, de falar, de movimentar os braços. A sensualidade ainda era mais intensa no olhar. Olhar de uma mulher cheia de vida e de desejos comuns às mulheres sensuais. Mas, agora, não passava daquela educada senhora com o olhar fixado na foto da parede, esquecida de seu passado e de seu presente, esquecida de todos e de quase tudo. Não me reconheceu nem reconheceria minha mulher. Tudo se havia apagado de sua memória fértil de outrora. Perguntou-me pelo meu nome e lhe respondi, inclusive lhe falei de minha mulher e de meus filhos. Ela nada comentou. Disse apenas novamente:
- Veja ele! Como está bonito! Na parede, aquele homem que conheci melhor quando eu já era casado e tinha filhos, lá, imóvel, permanecia na parede. Entre ele a mulher, uma vida de amizade e de cumplicidade, quiçá de amor mesmo. Davam-se bem. Não tiveram filhos juntos, mas criaram duas filhas, agora, já moças e uma delas prestes a e casar, como me falara a velha empregada da casa.
Não ia me demorar muito naquela velha, bela e confortável casa. Mas, eu me senti um pouco triste ao ver a cena de decadência de um ser que fora belo e ativo, cheio de sonhos, sobretudo quando adolescente na cidade de São Paulo, onde eu morava. Novamente ela se dirigiu a mim, sempre sentada, como se estivesse sempre pronta a sair pra fazer compras ou ir a um shopping center elegante tanto quanto ela o foi fisicamente no passado. Na cidade de São Paulo, morou nos anos cinquenta do século passado. Saíra do Piauí para passar uns tempos com um tio, que exercia funções importantes no governo paulista.
Naquela época, o tio residia no centro de São Paulo. Morava numa casa majestosa, com jardins e um pequeno chafariz jorrando água da boquinha de um anjo de chumbo. Belíssimo jardim bem cuidado tal como aqueles lindos e floridos jardins que encontramos na Inglaterra e na Escócia. Nela havia três bancos para a família conversar nas tardes dos sábados paulistanos. Jardim grande, com um coreto, à noite, sempre iluminado e com aqueles pequenos postes de iluminação espalhados nos quatro cantos. O seu tio, bonachão, sempre a deixava à vontade. Estudava numa escola conhecida pela sua educação com forte influência francesa. Por isso, ela sabia falar bem francês. Amava os romances de M. Delly, os poemas de Lamartine, de Musset, quase todos os românticos franceses. Seus passeios, seus namorados, sua íntima vontade de ser atriz. Voz bela possuía, assim como o rosto meio quadrado e os cabelos negros um pouco encaracolados, o corpo bem torneado, com aqueles volumes que nos lembram a arquitetura de Oscar Niemeyer.
Mas, os sonhos não se realizaram. Voltou pro Piauí, para sua Teresina. Lá casaria. Tornou-se funcionária pública do Estado, no Tribunal de Justiça. Aposentara-se.
Eu já me ia despedir quando ela me perguntou:
- Como está São Paulo?
- São Paulo está completamente diferente, acrescentei. Vida agitada, violência, trânsito sempre pesado. Ninguém aguenta. Ela, por sua vez, não deu importância ao que dissera e me veio com a mesma pergunta:
- Como está São Paulo? Aquela rua em que morei. Ah, aquela rua... Quanta alegria vivi naquela rua ! E me perguntou outra vez:
- Como está São Paulo? A Helena está bem? Helena é minha mulher e só usou o nome dela porque pouco antes havia eu mencionado o nome de minha mulher, pois as duas foram, apesar da diferença de idade, boas amigas.Não satisfeita ainda perguntou:
- Você está vendo ele? Como é o seu nome mesmo? São Paulo, com está São Paulo?
- Meu nome é Paulo Cardoso. Sua amiga Helena vai bem, e lhe mandou muitos abraços. Está com saudades de você. Ao que, antes de lhe dizer adeus, por fim interpelou:
- Como é seu nome? Olhe o retrato dele. Veja como está bem, e me apontou com o indicador um tanto trêmulo. Daquela casa bela e velha, já sem a alma da alegria me despedi despedaçado por dentro.

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